sábado, 23 de outubro de 2010

VIDA DE SANTO AGOSTINHO (354 - 430)

Santo Agostinho – Biografia Pensamentos










SUMÁRIO

Introdução

1 Biografia

1.1 Cristão

1.2 Bispo

2 Obras

3 Pensamento

4 Influência como pensador e teólogo

5 Notas e referências

6 Bibliografia



















VIDA DE SANTO AGOSTINHO (354 - 430)




Aurélio Agostinho, Bispo de Hipona

Introdução

Os Santos Padres da Igreja. Aurélio Agostinho, Bispo de Hipona. O maior Padre da Igreja Latina. Grande defensor da Fé Cristã. Popular Santo Agostinho de Hipona. Nascimento: 13 de novembro de 354 em Tagaste, Argélia. Falecimento: 28 de agosto de 430 em Hipona, Argélia. Venerado por: maioria das comunidades cristãs. Principal templo: San Pietro in Ciel d'Oro, Pávia, Itália. Festa litúrgica: 28 de agosto no Ocidente

15 de junho no Oriente. Atribuições: criança, pomba, pena (de escrever), concha, coração trespassado. Bispo de Hipona, Padre latino e Doutor da Igreja (Doctor Gratiae). Padroeiro: teólogos, agostinianos, cervejeiros e impressores. Polêmicas: contra o maniqueísmo, o donatismo, o arianismo etc. Santo Agostinho: homem de paixão e de fé, de grande inteligência e incansável solicitude pastoral, este grande santo e doutor da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou uma marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo. Pelo seu singular relevo, Santo Agostinho teve uma influência vastíssima, e poder-se-ia afirmar, por um lado, que todas as estradas da literatura latina cristã levam a Hipona (hoje Annaba, à beira-mar da Argélia), o lugar onde era Bispo e, por outro, que desta cidade da África romana, da qual Agostinho foi Bispo de 395 até à morte em 430, se ramificam muitas outras estradas do cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental.

Raramente uma civilização encontrou um espírito tão grande, que soubesse acolher os seus valores e exaltar a sua intrínseca riqueza, inventando idéias e formas das quais se alimentariam as gerações vindouras, como ressaltou também Paulo VI: "Pode-se dizer que todo o pensamento da antiguidade conflui na sua obra e dela derivam correntes de pensamento que permeiam toda a tradição doutrinal dos séculos sucessivos" (AAS 62, 1970, p. 426). Além disso, Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras. O seu biógrafo Possídio diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever tantas coisas durante a vida. Falaremos destas diversas obras num próximo encontro. Hoje a nossa atenção concentra-se sobre a sua vida, que se reconstrói bem pelos escritos, e em particular pelas Confissões, a extraordinária autobiografia espiritual, escrita em louvor a Deus, que é a sua obra mais famosa. E são precisamente as Confissões agostinianas, com a sua atenção à interioridade e à psicologia, que constituem um modelo único na literatura ocidental, e não só, também não religiosa, até à modernidade. Esta atenção à vida espiritual, ao mistério do eu, ao mistério do Deus que se esconde no eu, é uma coisa extraordinária sem precedentes e permanece para sempre, por assim dizer, um "vértice" espiritual. Mas, falando da sua vida, Agostinho nasceu em Tagaste na Província de Numídia, na África romana a 13 de Novembro de 354, filho de Patrício, um pagão que depois se tornou catecúmeno, e de Mônica, cristã fervorosa. Esta mulher apaixonada, venerada como santa exerceu sobre o filho uma grandíssima influência e educou-o na fé cristã. Agostinho recebeu também o sal, como sinal de acolhimento no catecumenato. E permaneceu sempre fascinado pela figura de Jesus Cristo; aliás, ele diz que amou sempre Jesus, mas que se afastou cada vez mais da fé eclesial, da prática eclesial, como acontece hoje com muitos jovens.

Agostinho tinha também um irmão, Navígio, e uma irmã, da qual não sabemos o nome e que, tendo ficado viúva, chefiou depois um mosteiro feminino. O jovem, de inteligência aguda, recebeu uma boa educação, mesmo se nem sempre foi um estudante exemplar. Contudo ele estudou bem a gramática, primeiro na sua cidade natal, depois em Madaura, e a partir de 370 retórica em Cartago, capital da África romana: dominava perfeitamente a língua latina, mas não conseguiu dominar do mesmo modo o grego nem aprendeu o púnico, falado pelos seus conterrâneos. Em Cartago Agostinho leu pela primeira vez o Hortensius, um escrito de Cícero que depois se perdeu, o qual está na base do seu caminho rumo à conversão. De fato, o texto de Cícero despertou nele o amor pela sabedoria, como escreverá já Bispo, nas Confissões: "Aquele livro mudou verdadeiramente o meu modo de sentir", a ponto que "de repente perdeu valor qualquer esperança vã e desejava com um incrível fervor do coração a imortalidade da sabedoria" (III, 4, 7).

Mas estando convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se encontrou efetivamente a verdade, e dado que neste livro apaixonante lhe faltava aquele nome, logo após tê-lo lido começou a ler a Escritura, a Bíblia. Mas ficou desiludido. Não só porque o estilo latino da tradução da Sagrada Escritura era insuficiente, mas também porque o próprio conteúdo lhe pareceu insatisfatório. Nas narrações da Escritura sobre guerras e outras vicissitudes humanas não encontrava a altura da filosofia, o esplendor de busca da verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e assim procurava uma religião que correspondesse ao seu desejo de verdade e também ao seu desejo de se aproximar de Jesus. Caiu assim na rede dos maniqueus, que se apresentavam como cristãos e prometiam uma religião totalmente racional. Afirmavam que o mundo está dividido em dois princípios: o bem e o mal. E assim se explicaria toda a complexidade da história humana. Agostinho apreciava também a moral dualista, porque implicava uma moral muito alta para os eleitos: e para quem, como ele, a ela aderia, era possível uma vida muito mais adequada à situação do tempo, sobretudo para um homem jovem. Portanto, tornou-se maniqueu, convencido naquele momento de ter encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade e amor a Jesus Cristo. E teve também uma vantagem concreta para a sua vida: de fato, a adesão aos maniqueus abria perspectivas fáceis para fazer carreira. Aderir àquela religião que contava muitas personalidades influentes permitia-lhe prosseguir a relação estabelecida com uma mulher e continuar a sua carreira. Desta mulher teve um filho, Adeodato, por ele muito querido, muito inteligente, que estará depois presente na preparação para o baptismo junto do lago de Como, participando naqueles "Diálogos" que Santo Agostinho nos transmitiu. Infelizmente o jovem faleceu prematuramente. Professor de gramática aos vinte anos na sua cidade natal, regressou cedo a Cartago, onde foi um brilhante e celebrado mestre de retórica. Todavia, com o tempo, Agostinho começou a afastar-se da fé dos maniqueus, que o desiludiram precisamente sob o ponto de vista intelectual porque não esclareceram as suas dúvidas, e transferiu-se para Roma, e depois para Milão, onde na época residia a corte imperial e onde obtivera um lugar de prestígio graças ao interesse e às recomendações do prefeito de Roma, o pagão Símaco, hostil ao Bispo de Milão, Santo Ambrósio.

Em Milão Agostinho adquiriu o costume de ouvir inicialmente para enriquecer a sua bagagem retórica as lindíssimas pregações do Bispo Ambrósio, que tinha sido representante do imperador para a Itália setentrional, e pela palavra do grande prelado milanês o retórico africano sentiu-se fascinado; e não só pela sua retórica, sobretudo o conteúdo atingiu cada vez mais o seu coração. O grande problema do Antigo Testamento, da falta de beleza retórica, de elevação filosófica resolveu-se, nas pregações de santo Ambrósio, graças à interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho compreendeu que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus Cristo. Encontrou assim a chave para compreender a beleza, a profundidade também filosófica do Antigo Testamento e percebeu toda a unidade do mistério de Cristo na história e também a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no Logos, em Cristo Verbo eterno que se fez carne.

Em breve tempo Agostinho deu-se conta de que a literatura alegórica da Escritura e a filosofia neoplatônica praticadas pelo Bispo de Milão lhe permitiam resolver as dificuldades intelectuais que, quando era jovem, na sua primeira abordagem aos textos bíblicos, lhe pareciam insuperáveis.

À dos escritos dos filósofos Agostinho fez seguir-se a leitura renovada da Escritura e, sobretudo das Cartas paulinas. A conversão ao cristianismo, a 15 de Agosto de 386, colocou-se no ápice de um longo e atormentado percurso interior, do qual falaremos noutra catequese, e o africano transferiram-se para o campo a norte de Milão, nas proximidades do lago de Como com a mãe Mônica, o filho Adeodato e um pequeno grupo de amigos a fim de se preparar para o baptismo. Assim, aos trinta e dois anos, Agostinho foi baptizado por Ambrósio a 24 de Abril de 387, durante a vigília pascal, na Catedral de Milão.

Depois do baptismo, Agostinho decidiu regressar à África com os amigos, com a ideia de praticar uma vida comum, de tipo monástico, ao serviço de Deus. Mas em Óstia, à espera de partir, a mãe improvisamente adoeceu e pouco mais tarde faleceu, dilacerando o coração do filho. Regressando finalmente à pátria, o convertido estabeleceu-se em Hipona para ali fundar um mosteiro. Nesta cidade da beira-mar africana, apesar das suas resistências, foi ordenado presbítero em 391 e iniciou com alguns companheiros a vida monástica na qual pensava há tempos, dividindo os seus dias entre a oração, o estudo e a pregação. Ele desejava estar só ao serviço da verdade, não se sentia chamado à vida pastoral, mas depois compreendeu que a chamada de Deus era para ser pastor entre os outros, e oferecer assim o dom da verdade aos demais. Em Hipona, quatro anos mais tarde, em 395, foi consagrado Bispo. Continuando a aprofundar o estudo das Escrituras e dos textos da tradição cristã, Agostinho foi um Bispo exemplar no seu incansável compromisso pastoral: pregava várias vezes por semana aos seus fiéis, apoiava os pobres e os órfãos, cuidava da formação do clero e da organização de mosteiros femininos e masculinos. Em pouco tempo o antigo rectórico afirmou-se como um dos representantes mais importantes do cristianismo daquele tempo: muito activo no governo da sua diocese com notáveis influências também civis nos mais de 35 anos de episcopado, o Bispo de Hipona exerceu grande influência na guia da Igreja católica da África romana e mais em geral no cristianismo do seu tempo, enfrentando tendências religiosas e heresias tenazes e desagregadoras como o maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo, que punham em perigo a fé cristã no Deus único e rico em misericórdia.

E a Deus se confiou Agostinho todos os dias, até ao extremo da sua vida: atingido por febre, quando havia três meses que Hipona estava assediada pelos vândalos invasores, o Bispo narra o amigo Possídio na Vita Augustini pediu para transcrever em letras grandes os salmos penitenciais "e fez pregar as folhas na parede, de modo que estando de cama durante a sua doença os podia ver e ler, e chorava ininterruptamente lágrimas quentes" (31, 2). Transcorreram assim os últimos dias da vida de Agostinho, que faleceu a 28 de Agosto de 430, quando ainda não tinha completado 76 anos. Dedicaremos os próximos encontros às suas obras, à sua mensagem e à sua vicissitude interior.

O conteúdo de fé proposto pelo cristianismo nascente sofreu transformações ao longo dos séculos, até a consolidação do seu corpo filosófico, teológico e doutrinal. Processo que levou o cristianismo a perder seu caráter de doutrina aparentemente simples, constituída por algumas regras de conduta moral exortadas por Cristo, desprovida de preocupação filosófica, por não se constituir num conjunto de idéias produzidas e sistematizadas pela razão.

Essa orientação primeira do cristianismo nascente ganhou maiores dimensões com o diálogo que foi obrigado a estabelecer com a cultura clássica, tendo em vista atender aos interesses que se colocavam com as novas necessidades para além das fronteiras palestinas.

Papel significativo nesse processo, em fins da antiguidade, tiveram os padres da igreja que se dedicaram na elaboração de textos a respeito da fé e da revelação divina. O conjunto desses textos ficou conhecido como “Filosofia Patrística”.

Nesse cenário, destaque especial teve Santo Agostinho1 que, na tentativa de conciliar fé e razão, promoveu a harmonização de elementos da filosofia clássica com fragmentos dos Padres Cristãos que o antecederam.

1 Aurelius Augustinus (Santo Agostinho), que viveu entre 354 a 430 da nossa era, nasceu em Tagaste –África, província romana da Numídia, atual Argélia. Através de Cícero tem contato com a filosofia, que desde então é utilizada como base em suas reflexões. Nesse espaço de tempo Agostinho tem seu único filho, Adeodato, com sua amante, não a assumindo devido à pressão da família, por ela não pertencer a sua classe social. No período que compreende os anos 373 e 374, Agostinho leciona em Tagaste e Cartago, como resultado de seus estudos desenvolvidos em Madura e Cartago em 365 e 370, respectivamente. Quando Agostinho passa a lecionar em Roma e Milão, ele abandona a seita maniqueísta e descobre o estoicismo, atendo-se fundamentalmente aos escritos de Plotino. É nessa época também que Agostinho lê as cartas de Paulo de Tarso, o que viria a influenciar profundamente suas reflexões. Então, converte-se ao cristianismo no ano de 386 da nossa era. A pedido do povo torna-se presbítero de Hipona (hoje Annaba ou Bone, na Argélia), na qual mais tarde se tornaria Bispo. Em 430, Agostinho deixa a “cidade dos homens” para penetrar na “cidade de Deus”.



Santo Agostinho e seu Tempo



Aurelius Augustinus (Santo Agostinho) viveu entre 354 a 430 da nossa era. Este espaço de tempo foi de intensa agitação política no ocidente, pois o Império Romano mantinha sob domínio grande parte desse território e continuava sua expansão tanto na Europa quanto na África. Assim, muitos povos estavam sujeitos a ser vítimas das invasões bárbaras2, inclusive o que habitava Tagaste - África, província romana da Númidia, atual Argélia, onde Agostinho nasceu. De acordo com Henri-Irénée Marrou (1957), este povo aventureiro (os bárbaros) que um périplo estupendo conduzira, num curto espaço da vida de um homem, do fundo das planícies húngara e silesiana, através da Europa inteira, até a Espanha e Gibraltar, para ir destruir o poderio romano na África do Norte e em Cartago. Devido à localização da cidade natal de Santo Agostinho – aproximadamente 180 Km a leste de Constantina e a 100 ao sul de Bône – este foi considerado um romano da África. Sendo esta uma terra literalmente latina, o latim serviu-lhe como vínculo de cultura e também como língua materna, sendo até mesmo adversa a língua e a cultura grega. Assim, segundo Henri-Irénée Marrou (1957), a cultura que Santo Agostinho recebeu e possuiu foi literária e, sobretudo, latina, pois já então começava a se aprofundar o fosso, rompendo a unidade da civilização mediterrânea, que iria separar cada vez mais o oriente grego do ocidente. - “Mas

qual era a causa da aversão que tinha à língua grega que me ensinavam quando criança? É o que ainda hoje me não sei explicar. “Pelo contrário, gostava muito da língua latina, não da que ensinavam os primeiros mestres, mas da que lecionavam os gramáticos”. (AGOSTINHO,1999, p. 51).

A biografia de Agostinho é relatada no livro que ele mesmo redigiu. “As Confissões”, que segundo Siqueira Abrão (1999, p. 97); “É quase uma demonstração na prática de seu pensamento: experimentou o ceticismo quanto ao conhecimento, sofreu o abismo do homem em pecado, reencontrou a esperança na graça divina, conheceu a felicidade e a certeza da verdade na fé”. Assim, pode-se afirmar que Agostinho não nasceu santo, porém sua conversão e a formulação de sua teoria teve um caráter ideológico3 tão forte que perdura até nossos dias. 2 Os povos bárbaros, neste caso, são grupos nômades oriundos da Ásia Central, que, pressionados pelos hunos do extremo oriente, invadiram as províncias romanas da Península Ibérica, Itália e África do Norte. “As ideologias, ou às utopias, ou às visões de mundo, todas elas são produtos sociais. Todas elas têm que ser analisadas em sua historicidade, no seu desenvolvimento histórico, na sua transformação. O ceticismo agostiniano ao qual o autor se refere, compreende ao período dos dezoito anos, quando Agostinho através dos escritos de Cícero (106 – 43 a.C.), especificamente a leitura da “Exortação à Filosofia”, satisfaz-se com a filosofia maniqueísta4, pois, acreditava que esta era digna de um intelectual culto, ao contrário do catolicismo que era uma religião boa para os simples como sua mãe Mônica. “O que senti, quando tomei nas mãos aquele livro [a bíblia], não foi o que acabo de dizer, senão que me pareceu indigno de compará-lo à elegância ciceroniana. A sua simplicidade repugnava ao meu orgulho e a luz da minha inteligência não lhe penetrava no íntimo” (AGOSTINHO, 1999, p. 84). Isso se deve ao fato de que o ponto capital desta religião revelada era de definir como uma doutrina científica, demonstrada pela razão, assim o maniqueísmo resolvia de maneira cômoda o problema moral, permitindo unir de modo paradoxal o ideal mais elevado com o procedimento mais fácil, preconizando um asceticismo rigoroso, muito mais absoluto que o dos cristãos (MARROU, 1957).

Estes conflitos teóricos do pensador são frutos dos seus estudos, período que compreende dos sete aos dezenove anos (365 e 370), interrompidos aos dezesseis por falta de dinheiro. Os primeiros anos foram realizados em uma escola primária na cidade natal e, depois, em uma escola secundária em Madura. Os estudos superiores foram iniciados em Madura e retomados em Cartago5. A base da educação de Santo Agostinho foi a retórica, arte de falar e conseqüentemente de escrever, que consistia num complexo sistema de divisões e de definições, por isso, era necessário anos de estudos para que se dominasse essa arte.

É nesse espaço de tempo que Santo Agostinho tem seu único filho, Adeodato, com sua

amante, não a assumindo devido à pressão da família, principalmente de Santa Mônica, por ela não pertencer à mesma classe social. Esse casamento ainda seria ilegal, porque a

legislação dos imperadores proibia aos honestiores, como Santo Agostinho, desposarem de histórica. Portanto, essas ideologias ou utopias, ou visões de mundo têm que ser desmistificadas na sua pretensão a uma validade absoluta. Uma vez que não existem princípios eternos, nem verdades absolutas, todas as teorias, doutrinas e interpretações da realidade, têm que ser vistas na sua limitação histórica. Esse é o coração mesmo do método dialético, é o primeiro elemento do método e da análise dialética” (LOWY 1985, p.15).

O maniqueísmo foi o último grande movimento religioso no oriente depois do Cristianismo e antes do Islamismo, os princípios dessa seita se pautavam em dois princípios absolutos que regiam o mundo: o bem o mal. (cf. RANKE-HEINEMANN, 1999; ANDERY et al, 2001 e ABRÃO 1999). 5 Cartago, cidade da África romana que depois de Roma é a maior cidade do Ocidente latino. mulheres de baixa extração. Pouco se sabe sobre esta mulher6, cujo nome é desconhecido. Mesmo nas obras dedicadas a ela o autor refere-se a “aquela que foi amada por Agostinho”: “por esses anos tinha em minha companhia uma mulher que não havia sido reconhecida em matrimônio o que se chama legítima, e que fora procurada por um inquieto ardor, falho de prudência” (AGOSTINHO, 1999, p. 100).

Torna-se um maniqueu de primeira classe ou “eleito”, pois, não desposava mais de uma mulher. Os que desfrutavam dessa regalia eram denominados “de segunda classe” ou“ouvintes”, aos quais era permitido o matrimônio desde que não gerassem filhos, almejando com isso que centelhas de luz ficassem aprisionadas na matéria diabólica. (RANKEHEINEMANN, 1999). Santo Agostinho permanece na seita maniqueísta em torno de nove a dez anos, ou seja, até quando esta se revelou o que de fato era: uma mitologia de fantasia, afastada do rigor filosófico. “Meu Deus, a Vós o confesso, a Vós que de mim Vos compadeceste quando ainda Vos não conhecia, quando Vos buscava não segundo a compreensão da inteligência, mas segundo o raciocínio da carne” (AGOSTINHO, 1999, p.88).

No período que compreende os anos de 373 a 374, Santo Agostinho leciona retórica em
Tagaste e Cartago, “Ensinava por aqueles anos retórica; e, vencido pela cobiça, vendia esta vitoriosa verbosidade” (AGOSTINHO, 1999, p. 100). Quando passa a lecionar em Roma e Milão, entra em contato com os intelectuais católicos após conhecer Santo Ambrósio. É nesta época também que descobre o estoicismo7 - “deparaste-me por intermédio de um certo homem, intumescido por monstruoso orgulho, alguns livros platônicos, traduzidos do grego para o latim” (AGOSTINHO, 1999, p. 183).

Atentou-se fundamentalmente aos escritos de Plotino8, um dos nomes mais relevantes para a constituição da filosofia neoplatônica. Foi encontrado na literatura uma obra de Jostein Gaarder (1997) que se intitula: Vita Brevis: A Carta de Flória Emília Para Aurélio Agostinho. Que seria a carta que a amante de Santo Agostinho lhe escrevera após ler suas confissões. Porém não se sabe ainda a veracidade dessa carta, segundo a autor no prefácio do livro esta carta é verdadeira e a biblioteca do vaticano tem conhecimento desta. O estoicismo era visto como uma doutrina que, com ligeiros retoques, parecia capaz de auxiliar a fé cristã e tomar consciência da própria estrutura interna e defender-se com argumentos racionais elaborando-se como teologia. (cf. RANKE-HEINEMANN, 1999; ANDERY et al, 2001 e ABRÃO1999).
 Plotino nasceu em 205 e morreu em 270. chega a Alexandria por volta de 232 e estuda com um certo Amônio Sacas, de quem nada sabe. Em 243, acompanha a expedição do imperador romano Gordiano. Este acontecimento foi decisivo e serviu para orientar toda a evolução intelectual e espiritual de Agostinho. Num ápice foram superadas todas as dificuldades: a descoberta do mundo inteligível, e de sua eminentemente realidade, dissipava as aberrações do materialismo; uma teoria do conhecimento, imbuída de certo dogmatismo raciocinado, eliminava o raciocínio da Academia Nova, tão cara a Cícero, pela qual Agostinho, num momento de desânimo, estivera a ponto de se deixar tentar (MARROU, 1957, p.33).

Neste período Santo Agostinho atém-se também às cartas de Paulo de Tarso, o que viria a influenciar profundamente nas suas reflexões. Então, tem-se a mais famosa cena das confissões: Em Milão, num dia qualquer de agosto de 386 da era cristã, um homem de trinta e dois anos de idade chorava nos jardins de sua residência.

Deprimido e angustiado, estava à procura de uma resposta definitivaque lhe desse sentido para a vida. Nesse momento ouviu uma voz decriança a cantar como se fosse um refrão: “Toma e lê, toma e lê”. Levantou-se bruscamente, conteve a torrente de lágrimas, olhou emtorno para descobrir de onde vinha o canto, mas não viu mais que umlivro sobre uma pequena mesa. Abriu e leu a página caída por acasosobre seus olhos: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e emulações, mas revesti-vos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis da carne com demasiados desejos” (PESSANHA, 1999, p. 05).

De acordo com Marrou (1957), a conversão ao cristianismo apresentou-se como ligada intimamente a uma conversão à vida perfeita, ao ideal monástico de asceticismo e decastidade, a decisão estava tomada, tanto de ingressar na Igreja como de renunciar ao mundo. Então, em 387, ele é batizado juntamente com Alípio, um amigo, e Adeodato, seu filho. Após a conversão do maniqueísmo para o cristianismo, Santo Agostinho transita da afirmação do prazer e da negação da procriação para o seu contrário, negando o prazer e estabelecendo a procriação como princípio fundamental da união conjugal. Assim, ele realiza o desejo da mãe, Santa Mônica, que lutara por isso toda a vida, pois, era uma cristã fervorosa que lhe ensinou até a Pérsia, onde, ao que se diz, teria sofrido influência do pensamento místico do oriente. Pouco depois, em Roma, abre uma escola. (cf. ABRÃO 1999).

Ao contrário do que possa sugerir o termo neoplatonismo, Plotino não representa apenas uma retomada do platonismo. Ele, na verdade, evita o dualismo de Platão, que, ao separar tão radicalmente o mundo inteligível do mundo sensível, foi obrigado a admitir a existência do outro (mundo), da idéias. (cf. ABRÃO 1999). Desde criança a conhecer e amar o nome de Cristo Salvador, diferente de seu pai, Patrício e pagão, que só se converte pouco antes de morrer. Com o propósito de se dedicar à vocação religiosa, após esse período conturbado, Santo Agostinho retorna a Tagaste e funda uma espécie de comunidade monástica, que tem como objetivo uma produção teórica a partir da meditação teológica. Porém, seus estudos são interrompidos, pois, a pedido do povo, torna-se presbítero de Hipona (hoje Annaba ou Bone, na Argélia), na qual mais tarde se tornaria bispo. Assim, este fato pode ser analisado por dois pontos: um negativo, porque com este título e com os encargos atribuídos ao mesmo, pouco tempo restou para a continuação de sua produção teórica. E, por outro lado positiva uma vez que foi através dela que Santo Agostinho pôde se aproximar dos aspectos da fé popular. Mas, ele não teve esse reflexo de defesa do intelectual ameaçado em seus estudos, pois aceitou propor o amor pela vida contemplativa às exigências de um ministério que cedo se revelou exaustivo.
Transformou-se realmente, num intelectual passado a serviço do povo, saído da torre de marfim das pequenas preocupações pessoais. Responsável perante Deus por uma comunidade inteira, abre-se mais largamente aos problemas concretos e ao conhecimento da vida e do homem. (MARROU, 1957, p.36).
Considerando, assim, que seu pensamento teria mais finalidade se redigido do que “pregado”, Santo Agostinho começa a se ocupar menos com as funções da igreja para dedicar um tempo maior à escrita, porém, é só nos últimos anos de sua vida, em 426 – com sessenta e dois anos , que isso acontece. Suas funções eclesiásticas são designadas ao seu sucessor Heráclito.
Estava cônscio que a obra escrita não constituía o lado menos importante de sua vida. Possuía sentimento vivo de ser útil a igreja inteira, tanto a de seu tempo como a do futuro: vemo-lo, ao cabo da existência, preocupado em pôr seus livros em ordem, em catalogá-los, revisá-los e em assegurar-lhes a conservação – para a posteridade. (MARROU, 1957, p. 47).
No mesmo período, ano 430, em que Hipona está cercada pelos vândalos, Santo Agostinho deixa a “cidade dos homens” para adentrar na “Cidade de Deus”.
Os séculos IV e V, em que Agostinho vive, caracterizam-se na passagem do mundo grecoromano para a Idade Média. Neste período, a filosofia perde sua confiança na razão e mergulha no ceticismo, com exceção do neoplatonismo ( SIQUEIRA ABRÃO, 1999). É então que Santo Agostinho consegue concretizar a conciliação paradoxal entre fé e razão, a qual ele denomina “Filosofia Cristã”, que é fruto da continuidade da filosofia dos santos padres, a filosofia patrística10.

De certo modo, ele próprio representa essa passagem: nutriu-se dos resquícios da cultura helenística para depois converter-se a fé cristã. Ao romper com o passado, introduzindo uma noção de Deus alheia a filosofia de até então, Agostinho o faz de um modo que caracteriza uma certa continuidade da tradição filosófica.(SIQUEIRA ABRÃO, 1999, p. 99)

Toda a obra de Santo Agostinho tem como base a Sagrada Escritura, pois para ele, esta é fonte de toda a verdade, toda a doutrina, é o centro da cultura cristã e de toda a vida espiritual – o conhecimento provém, portanto, de fonte divina, eterna e imutável, e não humana. Assim segundo Marrou (1957), ele assimilou a Bíblia como na juventude aprendera assimilar Cícero e Virgílio: seu estilo dela se esmalta da mesma forma como, apesar dos esforços que tenha feito, continua sempre impregnado de formulas clássico, mesmo sendo seu pensamento inteiramente inspirado no paulinismo.

O estilo de Agostinho reflete simultaneamente segurança própria do retórico dotado de recursos infinitos e a sensibilidade de uma natureza extremamente rica: nada de cerebralismo ressequido que reduz tudo a um esquema de idéias puras. Mas uma emotividade intensa, de ressonância indefinidamente prolongada (...) pois esse pensador é também, como fora Platão, um artista do verbo, um grande escritor que soube forjar processos de expressão de maravilhosa eficácia para exprimir com suas concepções originais. (MARROU, 1957, p. 65)

A maior parte dos escritos de Santo Agostinho é inspirada em problemas concretos que preocupavam a igreja da época, por isso, sua produção teórica está concentrada após sua conversão ao catolicismo, principalmente nos tratados de teologia moral, como: sobre a virgindade, o valor do matrimônio e também a instrução dos catecúmenos, que se torna um manual de orientação aos que seriam iniciados nos mistérios da fé.

10 A filosofia patrística tem como objetivo mostrar-se não-oposta às verdades racionais do pensamento helênico, tão prezados pelas autoridades romanas, para isso, é no próprio pensamento grego e romano que ela busca sua fundamentação teórica, revestindo-os com a ideologia cristã. (ver mais: SIQUEIRA ABRÃO, 1999; PESSANHA, 1999.)



O Processo Educativo para Santo Agostinho

O processo educativo para Santo Agostinho passa pela busca interior do homem, assumindo um caráter educacional, de auto-educação. Segundo José J. Pereira Melo (2002), a educação em Santo Agostinho é concebida como processo mediante o qual o ‘homem exterior’ material, mutável e mortal ia cedendo lugar espaço para o ‘homem interior’, espiritual, imutável e imortal. Transformação que se dava à medida que o homem se aproximava e se familiarizava com Cristo: a verdade, a palavra de Deus que se fez homem. “Vuelve ao corazón, mira allí qué es-lo que tal vez sientes de Dios: allí está la imagen de Dios. En el hombre interior habita Cristo, y el hombre interior serás renovado según la imagen de Dios; conece en su imagen a su Creador” (AGUSTÍN, 1957, p.11).

Dessa forma, o processo educativo para Santo Agostinho se torna uma longa caminhada de purificação moral e intelectual. Fazendo com que o homem chegasse à verdade com seu ‘olho interior’, o ‘olho da mente’, ao captar a essência do conhecimento. “É próprio de todos os homens quererem ser felizes, mas nem todos possuem a fé para chegar à felicidade pela purificação do coração” (AGOSTINHO, 1995, p.20-25).

Essa busca seria resultado da insatisfação natural do homem consigo mesmo o que o levaria a uma busca do melhoramento pessoal, ou seja, a caminhada educativa. Dessa forma, a busca pela felicidade agora estaria em Deus e não mais na filosofia como para os filósofos da antiguidade (PEREIRA MELO, 2002).

A educação seria, então, destinada àqueles que não tinham medo de buscar a felicidade completa em Deus, tornando-se, assim, um processo de santificação, onde o homem à medida que se aproxima de Deus, aproxima-se, concomitantemente, do verdadeiro conhecimento. Para Santo Agostinho o homem é incapaz de realizar sozinho esse processo educativo, mesmo que o deseje e necessite, e que sua felicidade esteja nisso vinculada (PEREIRA MELO, 2002). Pois, para ele, a felicidade não está no conhecimento possibilitado pela razão e pelas ciências, ou seja, pela sensação. Mas está no próprio Deus que é o conhecimento e a sabedoria perfeita.

Nessa perspectiva, a sabedoria é o conhecimento de Deus por meio de seu filho Jesus Cristo, uma vez que, só Ele é a luz que ilumina a inteligência humana.

Nesse mesmo processo, para Pereira Melo (2002), Santo Agostinho impunha ao homem constantemente, a presente alternativa: viver segundo a carne e debilitar e romper a relação com Deus, caindo no pecado; ou viver segundo o espírito, confirmando a relação com o próprio Deus.

Assim, para o bispo de Hipona, quem seguisse esse caminho chegaria ao ideal, o renascimento do ‘homem espiritual’, e o primeiro passo nesse sentido era se afastar dos prazeres terrestres, o que trazia consigo a felicidade, a contemplação do bem maior. Assim, estabelece-se uma relação direta entre o conhecimento, a felicidade e Deus. E a felicidade é um dom do sábio.



A INSTRUÇÃO DOS CATECÚMENOS



O catecumenato torna-se a partir do século III d.C. a principal ferramenta de cristianização do homem romano, sendo assim, todos os esforços dos intelectuais cristãos voltam-se para a organização desse ‘novo’ saber. Uma vez que, a educação dos adultos atribuía uma importância fundamental a catequese. Tamanha consideração era dada pois se tratava da transmissão da fé, concomitante, os valores para organização de uma sociedade cristã. Esta obra proposta por Santo Agostinho vai ao encontro das necessidades da igreja de seu tempo. Pois ele a destina ao homem destemido e determinado a ser feliz de acordo com os princípios da fé. Assim é promulgado um novo ideal de homem e são destacados princípios até então considerados negativos no mundo antigo como a fraqueza, a tolerância e a compaixão (CAMBI, 1999).

A estrutura do catecumenato constituía-se em quatro etapas formativas para o catecúmeno ser inserido na vida cristã:

1 – os accedentes ou os rudes porque careciam dos rudimentos da fé;

2– os cathechumeni no oriente ou os auditores no ocidente, primeira classe dos que desejavam preparar-se para o batismo;

3 – os competentes ou electi, os que seriam iluminados;

4 – e por último, após o batismo na noite de Páscoa os neófitos eram instruídos nos mistérios e nos sacramentos (PAIVA, 2005).


Esta obra exprime então a expectativa fundamental da vida cristã, pois ela, demonstra a

importância atribuída à conquista de novos cristãos. A organização didática da transmissão da fé tornou-se fundamental, pois, era neste primeiro contato com o pensamento cristão que os rudes optavam ou não a entrarem para o catecumenato com vista ao batismo.

Encarregado de ensinar os rudimentos da fé aos candidatos do catecumenato, o diácono

Deogratias sentia-se angustiado ao notar que suas exposições não agradavam e até mesmo aborreciam os ouvintes: “Confessas e lamentas o que te sucede com freqüência quando, em sermão longo e monótono, não apenas aquele que instruis pela palavra aos demais ouvintes, mas tu mesmo te sentes diminuído e cheio de desgosto de ti” (AGOSTINHO, 2005, p.38).

Ao dividir esta aflição com seu amigo Agostinho, já nomeado Bispo de Hipona, ele não se recusa a colocar-se a reflexão e a disposição de Deogratias para a elaboração de um manual prático-didático de como catequizar, já que se tratava de uma questão fundamental: a transmissão dos princípios cristãos.

Pedes-me, irmão Deogratias, que te escreva algo que te ajude na instrução dos catecúmenos. Dizes-me que, freqüentemente, em Cartago, onde és diácono, são-te encaminhados os que devem receber a primeira instrução catequética – pela consideração da tua fecunda capacidade de catequizar, pela solidez da tua fé, pela doçura da tua palavra: e tu, quase sempre, te angustias procurando a maneira exata

pela qual deva ser ensinada essa doutrina que, pela fé, nos torna cristãos (AGOSTINHO, 2005, p.38).

Neste tratado Santo Agostinho explicita então as principais preocupações sobre a transmissão dos rudimentos da fé: “por onde começar? Até onde levar a narração?

Ao terminá-la, devemos dirigir uma exortação ao nosso ouvinte ou tão-somente ensinar-lhes os preceitos em cuja observância aprenderá a acreditar na vida e na revelação cristãs?” (SANTO AGOSTINHO, 2005, p.38).

Nesta perspectiva, ele organiza um trabalho de introdução sobre os fundamentos, o modo e a aplicação do catequizar, contendo elementos de fundamentação e aplicação da catequese. Santo Agostinho divide o tratado em três partes, outorgando o caráter prático e didático dessa obra:

1 – como conduzir a narração;

2 – arte de dar preceitos e exortar; e

3 – meios de adquirir alegria e bom humor.

De acordo com Hugo Paiva (2005) Santo Agostinho não inovou o conteúdo da catequese, baseada no percurso das escrituras sagradas, “o que é especifico de Santo Agostinho é a elaboração de uma síntese refletida e profunda dos princípios que orientam a narração catequética da História da Salvação” (PAIVA, 2005, p.14).

A narração de acordo com Santo Agostinho deve ser divida em dois momentos: a narratio e a expectatio. A primeira se refere à exposição dos acontecimentos salvíficos e a segunda diz respeito à esperança da ressurreição que gera o amor.

A exposição deve contemplar os acontecimentos mais significativos e reveladores da

intervenção de Deus: “Estes são a criação de Adão, o dilúvio, a aliança com Abraão, a realeza e sacerdócio de Davi, a libertação do cativeiro, a encarnação e ressurreição” (PAIVA, 2005, p.15).

Estes acontecimentos estão inseridos na divisão didática cristã que Santo Agostinho propõe para a história da humanidade ou a ‘História da Salvação’. As “sete épocas capitais que Santo Agostinho dividia a História são: de Adão a Noé; de Noé a Abraão, de Abraão a Davi; de Davi ao cativeiro de Babilônia; fim do cativeiro a Cristo; de Cristo à Parusia” (PAIVA, 2005, p.15)

Segundo Santo Agostinho o catequista deve contemplar e revelar essencialmente o conteúdo teológico destes conteúdos, a fim de demonstrar e fundamentar a fé para os catecúmenos.

A ‘unidade de desígnio’ tem como objetivo demonstrar em um fato histórico o principio

religioso, uma realidade interior, para seu desenvolvimento.

Há como que um fio condutor que faz descortinar um caminho que remete sempre para além, para Deus, de tal modo que os acontecimentos são a um tempo realizações parciais e sinais. Em outras palavras, realizam e prometem, antecipam e comprometem,

revelam e ocultam um desígnio de amor que não é outro senão Cristo, verdadeiro sentido e de decifração da História. Nele se totalizam e se recapitulam o ontem o hoje e o amanhã (PAIVA, 2005, p.15).



Assim, o desenvolver desses fatos demonstram o desígnio do amor de Cristo, que se torna o único sentido de decifração da História, e ao mesmo tempo é a força motriz que a impulsiona.

Assim, a normas para narração são ao mesmo tempo o modo em que Deus conduziu seu povo a salvação.

Desse modo, é desvelado o objetivo da catequese. Inserida em uma unidade mais ampla que é a totalidade da História da Salvação Humana, Santo Agostinho revela o verdadeiro objetivo a ser alcançado pelos catecúmenos: entender o desígnio de amor.

Pois, só assim, o amor será entendido como uma realidade permanente que dá unidade e

continuidade à História. “O objetivo da catequese da História da Salvação é, pois, suscitar uma expectativa ou uma vida, cheia de fé, esperança e amor que, a partir da manifestação das escrituras, descobre o Amor agindo em toda a História Humana” (PAIVA, 2005, p.18)

A narração ou o ‘ato de instruir pela palavra’ deve alcançar seu objetivo final ao fundamentar a fé, suscitar a esperança e alimentar o amor. “Por esse amor, portanto, como por um alvo proposto, pelo qual digas tudo o que dizes, o que quer que narres faze-o de tal forma que aquele que te ouve, ouvindo creia e, crendo, espere e, esperando, ame” (AGOSTINHO, 2005, p.49).

O processo doutrinal pela catequese proposto por Santo Agostinho não divide o ensino moral do ensino das escrituras, pois, a moral é entendida como em seu aspecto cotidiano, assim, ela acontece concomitante aos ensinamentos e deve ser aplicada no cotidiano, por isso, o ponto de partida metodológico da catequese é o concretismo do próprio homem. A fé deve ser manifestada na vida ou não existe, por isso, crer é a atitude fundamental para a realização do processo educativo cristão.

Desse modo, o método catequético Agostino fundamenta-se fundamentalmente na obra e nas maneira de agir de Deus. É pensada também com o intuito de conduzir o homem a este caminho de descoberta da fé e da salvação.



Biografia



Agostinho, em um afresco de Sandro Botticelli



Aurélio Agostinho nasceu na cidade de Tagaste, província de Souk Ahras, na época uma província romana no norte de África, na atual Argélia, filho de pai pagão, chamado Patrício e mãe católica, Mônica. Foi educado no norte de África e resistiu aos ensinamentos de sua mãe para se tornar cristão. Agostinho teve uma juventude repleta de aventuras. Foi professor de retórica em Milão.

Aurélio Agostinho (em latim: Aurelius Augustinus), Agostinho de Hipona,[1] ou Santo Agostinho[2] (Tagaste, 13 de novembro de 354 - Hipona, 28 de agosto de 430), foi um bispo, escritor, teólogo, filósofo e é um Padre latino e Doutor da Igreja Católica.

Agostinho é uma das figuras mais importantes no desenvolvimento do cristianismo no Ocidente. Em seus primeiros anos, Agostinho foi fortemente influenciado pelo maniqueísmo e pelo neoplatonismo de Plotino,[3] mas depois de tornar-se cristão (387), ele desenvolveu a sua própria abordagem sobre filosofia e teologia e uma variedade de métodos e perspectivas diferentes.[4] Ele aprofundou o conceito de pecado original dos padres anteriores e, quando o Império Romano do Ocidente começou a se desintegrar, desenvolveu o conceito de Igreja como a cidade espiritual de Deus (em um livro de mesmo nome), distinta da cidade material do homem.[5] Seu pensamento influenciou profundamente a visão do homem medieval. A Igreja se identificou com o conceito de "Cidade de Deus" de Agostinho, e também a comunidade que era devota de Deus.[6]

Na Igreja Católica, e na Igreja Anglicana, é considerado um santo, e um importante Doutor da Igreja, e o patrono da ordem religiosa agostinha. Muitos protestantes, especialmente calvinistas, o consideram como um dos pais teólogos da Reforma Protestante ensinando a salvação e a graça divina.

Na Igreja Ortodoxa Oriental ele é louvado, e seu dia festivo é celebrado em 15 de junho, apesar de uma minoria ser da opinião que ele é um herege, principalmente por causa de suas mensagens sobre o que se tornou conhecido como a cláusula filioque.[7] Entre os ortodoxos é chamado de "Agostinho Abençoado", ou "Santo Agostinho o Abençoado".[8]

Maniqueísta converteu-se ao cristianismo em 386, por influência da sua mãe e do bispo de Milão Ambrósio. Em 391 foi ordenado sacerdote e quatro anos depois bispo de Hipona. Faleceu em 430, durante a tomada de Hipona pelos vândalos. Procurou conciliar a filosofia grega, sobretudo a de Platão, com a religião cristã.

Agostinho era de ascendência berbere. Com onze anos de idade, foi enviado para a escola em Madaura, uma pequena cidade da Numídia. Lá ele tornou-se familiarizado com a literatura latina, bem como práticas e crenças do paganismo. Em 369 e 370, ele permaneceu em casa.

Durante esse período ele leu o diálogo Hortensius de Cícero (hoje perdido), que deixou uma impressão duradoura sobre ele e despertou-lhe o interesse pela filosofia e passou a ser um seguidor do maniqueísmo.

Com dezessete anos, graças à generosidade de um concidadão, chamado Romaniano, o pai de Agostinho pode enviá-lo para Cartago para continuar sua educação na retórica. Vivendo como um pagão intelectual, ele tomou uma concubina; numa tenra idade, ele desenvolveu uma relação estável com uma mulher jovem em Cartago, com a qual teve um filho, Adeodato.

Durante os anos 373 e 374, Agostinho ensinou gramática em Tagaste. No ano seguinte, mudou-se para Cartago a fim de ocupar o cargo de professor da cadeira municipal de retórica, e permanecerá lá durante os próximos nove anos.

Desiludido pelo comportamento indisciplinado dos alunos em Cartago, em 383, mudou-se para estabelecer uma escola em Roma, onde ele acreditava que os melhores e mais brilhantes retóricos ensinaram. No entanto, Agostinho ficou desapontado com as escolas romanas, que ele encontrou apática. Quando chegou o momento para os seus alunos para pagar os seus honorários eles simplesmente fugiram.

Amigos maniqueístas apresentaram-lhe o prefeito da cidade de Roma, Symmachus, que tinha sido solicitado a fornecer um professor de retórica imperial para o tribunal provincial em Milão. Agostinho ganhou o emprego e ocupou o cargo no final de 384.[9]

Cristão



Agostinho recebe o batismo das mãos de Ambrósio



O cristianismo estava consolidado nessa época: embora tivesse apenas quatrocentos anos, era considerada a verdade irrefutável. Apesar disso, Santo Agostinho, que nasceu no norte da África, numa cidade chamada Tagaste, nem sempre foi cristão. Fez os primeiros estudos na cidade natal e, com a ajuda de um amigo, foi para Cartago, aos dezesseis anos, completar os estudos superiores. Não foi um bom aluno. Na juventude, detestava estudar grego. Interessou-se por filosofia ao ler uma obra de Cícero. Quando criança era cristão, mas depois passou por outras religiões, como a dos maniqueus, que formavam uma seita e dividiam o mundo entre o bem e o mal, treva e luz, espírito e matéria. Acreditavam que com o seu espírito, o homem pode transcender a matéria. O maniqueísmo contém uma visão dualista radical, bem e mal são tomados como princípios absolutos. Posteriormente, Agostinho combateu essa doutrina, que foi criada por Manes. De início ele recusava a ler a Bíblia, por considerá-la vulgar. Teve um caso de amor, envolto em paixões mundanas, e nasceu um filho, que falecido ainda adolescente. Com vinte anos, perdeu o pai e ficou sendo o responsável pelo sustento de duas famílias. Foi professor de retórica em Cartago, mas depois se mudou para Roma. Sua mãe foi contra a mudança e Agostinho teve de enganá-la na hora da viagem. De Roma foi para Milão, lecionar retórica. Muito influenciado pelos estóicos, por Platão e o neoplatonismo, também estava entre os adeptos do ceticismo. Abandonou o maniqueísmo, que critica. Converteu-se então à fé cristã, depois de conhecer a palavra do apóstolo Paulo, e batizou-se aos trinta e dois anos de idade. Desistiu do cargo de professor e voltou a Tagaste, onde fundou uma comunidade monástica, disposto a fundamentar racionalmente a fé, como foi comum na Idade Média. Mostrou que, sem a fé, a razão não é capaz de levar à felicidade. A razão, para Agostinho serve de auxiliar a fé, esclarecendo e tornando inteligível aquilo que intuímos. Ele tinha tomado contato com o pensamento neoplatônico onde a natureza humana contém parte da essência divina. Demonstrou que há limites para a racionalidade. Receberemos um saber que está além do natural. Com o cristianismo, uma luz inundou seu coração, sua alma encontrou a paz. Virou vigário aos trinta e seis anos, praticando a vida ascética.

Santo Agostinho escreveu Contra os Acadêmicos, direcionado à filosofia cética e expôs a teoria de que os sentidos dizem algo verdadeiro. O erro provém do juízo que fazemos das sensações, e não delas próprias. A sensação não é falsa, o que é falso é querer ver nelas uma verdade externa ao próprio sujeito. Virou Bispo de Hipona.

Agostinho ficou conhecido por “cristianizar” Platão, fazendo vários paralelos entre a parte espiritualista dele (que diz existir um mundo transcendente) e as Sagradas Escrituras. Faz a distinção entre o corpo, sujeito à sorte do mundo, e a alma, que é atemporal, e com a qual se pode conhecer Deus. Antes de Deus ter criado o mundo a partir do nada as Idéias eternas já existiam na sua mente. Deus é a bondade pura. Ele já conhece o que uma pessoa vai viver antes dela viver. Assim, apesar da humanidade ter sido amaldiçoada depois do pecado original, alguns alcançarão a verdade divina, a salvação. Isso depende do uso que fazemos do livre arbítrio, a faculdade que o indivíduo tem de determinar de acordo com a sua própria consciência a sua conduta, livre da Divina Providência, enquanto está vivo. Seria o ato livre de decisão, de opção. Durante um diálogo, Agostinho chega a conclusão que o mal não provém de Deus, mas sim do mau uso do livre arbítrio. De fato, para ele não existe mal, apenas a ausência de Deus. (com isso ele refuta de vez a doutrina dos maniqueus). Essa teoria encontra-se no livro O livre arbítrio.

Com uma vida errada, a alma fica presa ao corpo, porém a relação correta é a inversa. Os órgãos sensoriais sentem a ação dos elementos exteriores, a alma não. Deus é a fonte dos conhecimentos perfeitos e não o homem. A experiência mística leva à iluminação divina. Assim se chega às verdades eternas, e o intelecto então é capaz de pensar corretamente a ordem natural divina. A unidade divina é plena e viva, e guarda a multiplicidade. O amor de Deus é infinito. A graça e a liberdade complementam-se.

Na obra a Cidade de Deus, Agostinho faz oposição entre sensível e inteligível, alma e corpo, espírito e matéria, bem e mal e ser e não ser. Acrescenta a história à filosofia, interpretando a história da humanidade como o conflito entre a Cidade de Deus, inspirada no amor à Deus e nos valores que Cristo pregou, presentes na Igreja, e a Cidade humana, baseada nos valores imediatos e mundanos. Essas cidades estariam presentes na alma humana, e no final a Cidade de Deus triunfaria.

Outra obra importante são as Confissões, que é autobiográfica. Essa obra faz dele um precursor de Descartes, Rousseau e o existencialismo. Acredita na verdade contida nos números, que fazem parte da natureza.

Enquanto ele estava em Milão, Agostinho mudou de vida. Ainda em Cartago, começou a abandonar o maniqueísmo, em parte devido a um decepcionante encontro com um chefe expoente da teologia maniqueísta, Fausto.[9]

Em Roma, ele relata ter completamente se afastado do maniqueísmo, e abraçou o movimento cético da Academia Neoplatónica. Sua mãe insistia para que ele se tornasse cristão e também seus próprios estudos sobre o neoplatonismo também foram levando-o neste sentido, e seu amigo Simplicianus instou-o dessa forma também. Mas foi a oratória do bispo de Milão, Ambrósio, que teve mais influência sobre a conversão de Agostinho.

A mãe de Agostinho havia-o seguido para Milão e insistiu para que abandonasse a relação com a mulher com quem vivia ilegalmente e procurasse outra para casar, conforme as leis do mundo e a doutrina cristã. A amada foi mandada de volta para a África e Agostinho deveria esperar dois anos para contrair casamento legal; mas logo ligou-se a uma concubina.[9]

No verão de 386, após ter lido um relato da vida de António do Deserto, de Atanásio de Alexandria, que muito inspirou-lhe, Agostinho sofreu uma profunda crise pessoal. Decidiu se converter ao cristianismo católico, abandonar a sua carreira na retórica, encerrar sua posição no ensino em Milão, desistir de qualquer ideia de casamento, e dedicar-se inteiramente a servir a Deus e às práticas do sacerdócio.

A chave para esta transformação foi à voz de uma criança invisível, que ouviu enquanto estava em seu jardim em Milão, que cantava repetidamente, "Tolle, lege"; "tolle, lege" ("toma e lê"; "toma e ler"). Ele tomou o texto da epístola de Paulo aos romanos, e abriu ao acaso em 13:13-14, onde lê-se: "Não caminheis em glutonerias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites".[9]

Ele narra em detalhes sua jornada espiritual em sua famosa Confissões (Confessions), que se tornou um clássico tanto da teologia cristã quanto da literatura mundial. Ambrósio batizou Agostinho, juntamente com seu filho, Adeodato, na vigília da Páscoa, em 387, em Milão, e logo depois, em 388 ele retornou à África. Em seu caminho de volta à África sua mãe morreu, e logo após também seu filho, deixando-o sozinho, sem família.

EPISCOPADO

Após o regresso ao Norte da África, vendeu seu patrimônio e deu o dinheiro aos pobres. A única coisa com que ele ficou foi a casa da família, que se converteu em uma fundação monástica para si e um grupo de amigos.

Em 391, ele foi ordenado sacerdote em Hipona (atual Annaba, na Argélia). Em 396, foi eleito bispo coadjutor de Hipona (auxiliar, com o direito de sucessão depois da morte do bispo corrente) e pouco depois bispo principal. Ele permaneceu nessa posição em Hipona até sua morte em 430.[9]

Ele deixou o seu mosteiro, mas continuou a levar uma vida monástica na residência episcopal. Ele deixou uma regra (latim, regulamentos) para seu mosteiro que o levou ser designado o "santo padroeiro do clero regular", isto é, sacerdotes que vivem por uma regra monástica.





Tumba de Agostinho na Basílica de São Pedro em céu de ouro em Pávia.

Sua vida foi registrada pela primeira vez por seu amigo São Possídio, bispo de Calama, no seu Sancti Augustini vita. Descreveu-o como homem de poderoso intelecto e um enérgico orador, que em muitas oportunidades defendeu a fé católica contra todos seus inimigos.

Possídio também descreveu traços pessoais de Agostinho com detalhe, desenhando um retrato de um homem que comia com parcimónia, trabalhou incansavelmente, desprezando fofocas, rejeitando as tentações da carne, e que exerceu a prudência na gestão financeira conforme sua posição e autoridade de bispo.

Sua vida não é tranquila: missa diária, prega até duas vezes ao dia, dá catequese, administra bens temporais, resolve questões de justiça (cerca, muro, dívidas, brigas de família…), atende aos pobres e órfãos, etc.

Pouco antes da morte de Agostinho, a África romana foi invadida pelos vândalos, uma tribo guerreira que estava aderindo ao arianismo. Pouco depois de Hipona ser cercada pelos bárbaros Agostinho adoeceu; Possídio relata que ele gastou seus últimos dias em oração e penitência, pedindo para que os salmos penitenciais de Davi fossem pendurados em sua parede para que ele pudesse ler. Pouco tempo após sua morte, os vândalos levantaram o cerco de Hipona, mas não muito tempo depois eles voltaram e queimaram a cidade. Eles destruíram tudo, mas a catedral de Agostinho e a biblioteca ficaram inalteradas.

Agostinho foi canonizado por reconhecimento popular e reconhecido como um Doutor da Igreja. O seu dia é 28 de agosto, o dia no qual ele supostamente morreu. Ele é considerado o santo padroeiro dos cervejeiros, impressores, teólogos e de um grande número de cidades e dioceses.

Obras





Agostinho foi um autor prolífico em muitos géneros — Confissões, A Cidade de Deus; Solilóquios; Contra os Acadêmicos; Sobre a Vida Feliz; Sobre a Ordem; Sobre o Livre Arbítrio; tratados filosóficos, teológicos, comentários de escritos da Bíblia, além de sermões e cartas.

Dele restaram algumas centenas de cartas (Epistulae) e de sermões (Sermones) considerados autênticos. Além disso, deixou 113 obras escritas. Santo Agostinho é chamado de o Doutor da Graça, por sua compreensão sobre o tema.

• Textos autobiográficos:

As suas Confissões (Confesiones), escritas entre os anos 397-398, são geralmente consideradas como a primeira autobiografia. Agostinho descreve sua vida desde sua concepção até à sua então relação com Deus, e termina com um longo discurso sobre o livro do Génesis, no qual ele demonstra como interpretar a Bíblia. A consciência psicológica e auto-revelação da obra ainda impressionam leitores.

No fim da sua vida, Agostinho revisitou os seus trabalhos anteriores por ordem cronológica e sugeriu que teria falado de forma diferente numa obra intitulada Retratações, que nos daria uma imagem considerável do desenvolvimento de um escritor e os seus pensamentos finais.

• Filosóficos:

Diálogos: Solilóquios (Soliloquiorum libri duo), etc.

Contra-acadêmicos (Contra academicos, em que combate o cepticismo).

Disciplinarum libri (é uma vasta enciclopédia com o fim de mostrar como se pode e se deve ascender a Deus a partir das coisas materiais. Não está acabada).

• Apologéticos: Da vida religiosa livro I (De vera religione liber I), etc.

A Cidade de Deus (iniciado c. de 413, terminado 426, uma de suas obras capitais, nela nos oferece uma síntese de seu pensamento filosófico, teológico e político). O De civitate Dei libri XXII.

• Dogmáticos:

Entre 399-422, escreveu A Trindade, uma das principais obras que apoia a crença na Santíssima Trindade de Deus. O De Trinitate libri XV.

Enquirídio (Enchiridion, ad Laurentium ou De fide, spe et caritate liber I, é um manual de teologia segundo o esquema das três virtudes teológicas. Contém uma explicação do Credo, da oração do Padre Nosso e dos preceitos morais da Igreja Católica).

Da fé e do credo livro I (De fide et símbolo liber I), etc.

• Morais e pastorais:

Contra mendacium, Da catequese dos não instruídos livro I (De catechizandis rudibus liber I), Da continência livro I (De continentia liber I), Da paciência livro I (De patientia liber I), etc.

• Monásticos:

Regula ad servos — a mais antiga das regras monásticas do Ocidente.

• Exegéticos:

A Sagrada Escritura teve um papel decisivo para Agostinho. Se pode destacar:

Da doutrina cristã livro IV (De doctrina christiana libri IV (é uma síntese dogmática que servirá de modelo para as Sententiae os pensadores da Idade Média), De Genesi ad litteram libri XII, Da harmonia dos evangelhistas livro IV (De consensu Evangelistarum libri IV (foram escritos em resposta aos que acusavam os evangelistas de contradizer-se e de haver atribuído falsamente a Cristo a divinidade), etc.

• Tratados:

Tratados sobre o evangelho de João (In Iohannis evangelium tractatus), As enarrações, ou exposições, dos Salmos (Enarrationes in Psalmos), etc.

• Polémicos:

Muitas de suas obras tem caráter polêmico por causa dos conflitos que ele enfrentou. Isso levou São Posídio a classificá-las conforme os adversários combatidos: pagãos, astrológos, judeus, maniqueus, priscilianistas, donatistas, pelagianos, arianos e apolinaristas.[9]

De natura boni liber I, Psalmus contra partem Donati, De peccatorum meritis et remissione et de baptismo parvolorum ad Marcellium libri III (de 412, primeira teología bíblica da redencão, do pecado original e da necessidade do batismo), De gratia et libero arbitrio liber I (de 426, em que demonstra a necessidade da graça, da existência do livre arbitrío), De haeresibus, etc.

Pensamento

Em seu livro O livre-arbítrio, Santo Agostinho tenta provar de forma filosófica de que Deus não é o criador do mal. Pois, para ele, tornava-se inconcebível o fato de que um ser tão bom, pudesse ter criado o mal.

A concepção que Agostinho tem do mal, esta baseada na teoria platônica, assim o mal não é um ser, mas sim a ausência de um outro ser, o bem. O mal é aquilo que "sobraria" quando não existe mais a presença do bem. Deus seria a completa personificação deste bem, portanto não poderia ter criado o mal.

No diálogo com seu amigo Evódio, Agostinho tenta explicar-lhe de que a origem do mal está no livre-arbítrio concedido por Deus. Deus em sua perfeição, quis criar um ser que pudesse ser autônomo e assim escolher o bem de forma voluntária. O homem, então, é o único ser que possuiria as faculdades da vontade, da liberdade e do conhecimento. Por esta forma ele é capaz de entender os sentidos existentes em si mesmo e na natureza. Ele é um ser capacitado a escolher entre algo bom (proveniente da vontade de Deus) e algo mau (a prevalência da vontade das paixões humanas).

Entretanto, por ter em si mesmo a carga do pecado original de Adão e Eva, estaria constantemente tendenciado a escolher praticar uma ação que satisfizesse suas paixões (a ausência de Deus em sua vida). Deus, portanto, não é o autor do mal, mas é autor do livre-arbítrio, que concede aos homens a liberdade de exercer o mal, ou melhor, de não praticar o bem.

Influência como pensador e teólogo

Na história do pensamento ocidental, sendo muito influenciado pelo platonismo e neoplatonismo, particularmente por Plotino, Agostinho foi importante para o "baptismo" do pensamento grego e a sua entrada na tradição cristã e, posteriormente, na tradição intelectual europeia. Também importantes foram os seus adiantados e influentes escritos sobre a vontade humana, um tópico central na ética, que se tornaram um foco para filósofos posteriores, como Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, mas ainda encontrando eco na obra de Albert Camus e Hannah Arendt (ambos os filósofos escreveram teses sobre Agostinho).

É largamente devido à influência de Agostinho que o cristianismo ocidental concorda com a doutrina do pecado original. Os teólogos católicos geralmente concordam com a crença de Agostinho de que Deus existe fora do tempo e no "presente eterno"; o tempo só existe dentro do universo criado.

O pensamento de Agostinho foi também basilar na orientação da visão do homem medieval sobre a relação entre a fé cristã e o estudo da natureza. Ele reconhecia a importância do conhecimento, mas entendia que a fé em Cristo vinha restaurar a condição decaída da razão humana, sendo portanto mais importante. Agostinho afirmava que a interpretação da Bíblia deveria ser feita de acordo com os conhecimentos disponíveis, em cada época, sobre o mundo natural. Escritos como sua interpretação do livro bíblico do Gênesis, como o que chamaríamos hoje de um "texto alegórico", iriam influenciar fortemente a Igreja medieval, que teria uma visão mais interpretativa e menos literal dos textos sagrados.

Tomás de Aquino tomou muito de Agostinho para criar sua própria síntese do pensamento filosófico grego e do cristão. Dois teólogos posteriores que admitiram influência especial de Agostinho foram João Calvino e Cornelius Otto Jansenius.



Consdiderações Finais

Agostinho de Hipona (354 - 430) cria e tenta resolver problemas filosóficos pensando em si e nos seus dilemas e inquietudes morais e intelectuais. O que ele expôs como filosofia e teologia foram geralmente respostas para questionamentos seus. As suas investigações têm como centro a próprias características morais e intelectuais.

O objetivo de Agostinho é conhecer a alma, ou seja, a sua própria interioridade e para isso ele tem que passar pelo conhecimento de Deus. Ele busca desvendar os mistérios da fé e esta é o fim das suas inquisições, mas a fé é também uma exigência e guia para que as investigações sejam feitas.

A fé é um antecedente necessário da filosofia de Agostinho e para ele a fé é a percepção de ter sido tocado de alguma forma por Deus. Essa percepção além de mudar a forma de pensar muda também a forma de viver. A filosofia é um meio para melhor pensar, para melhor compreender a fé. Mas a fé não se coloca no lugar da inteligência, a fé incentiva a inteligência, o pensamento é também condição para que exista a fé. O conhecimento também não elimina a fé, esta se torna mais forte através da inteligência. A fé procura e a inteligência localiza e descobre.

Agostinho busca conhecer Deus e a alma, mas para ele essa busca é uma só, pois Deus se faz conhecer no interior da alma. Para conhecer Deus devemos conhecer a nossa alma. É em nossa interioridade que devemos tentar encontrar Deus. Se não buscarmos a nós mesmos, ao mais profundo de nós mesmos, não encontraremos Deus e não vamos conhecê-lo.

Além de Deus ser amor, Deus é a condição para que exista o amor. Para que possamos conhecer o amor de Deus temos que estar amando as outras pessoas. A esse amor aos homens Agostinho chama de amor fraterno ou caridade cristã. Amar a Deus é algo natural e intrínseco à natureza humana, pois somos imagens de Deus nosso criador que é a verdade eterna e a verdadeira eternidade.

Deus é o criador de tudo que existe no tempo, mas ele é criador também do tempo. O tempo começou com a criação, antes dela não existia tempo e Deus está fora do tempo, pois é eterno. Em Deus não existe passado ou futuro, ele é imutável e um ser imutável como Deus vive um eterno presente.

Para agostinho o tempo do homem é medido pela alma e para nós existe um passado e um futuro porque somos seres mutáveis e não podemos viver em um eterno presente. O passado é uma memória guardada na alma e o futuro é a alma que espera os acontecimentos. O presente é um constante deixar de ser tanto do futuro como do passado, é uma intuição. Existem, portanto três tempos presentes, o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. Esses três tempos encontram-se em nossa alma.

O mal em Agostinho é o amor por si mesmo e o bem é o amor por Deus. Os homens que vivem para amar Deus formam a Cidade de Deus e os homens que vivem para amar a si mesmo formam a Cidade dos Homens. Na cidade de Deus vive-se segundo as regras do espírito e na cidade dos homens vive-se segundo as regras da carne. As duas cidades vivem mescladas uma com a outra desde que iniciou a história da humanidade e assim ficarão até o fim dos tempos. Cada ser humano tem que se questionar para saber a qual das duas ele faz parte.

Deus não criou o mal. Agostinho acreditava que um ser em que só pode residir o bem não pode ser o criador do mal. Tudo que existe é bom e o mal é a ausência desse bem, é a ausência de Deus. Deus nos concedeu o Livre-Arbítrio, que é a nossa capacidade de decidir conforme nosso entendimento, e é dele que vem o mal. Deus nos criou independentes para que pudéssemos decidir por nossa vontade e através de nossa liberdade escolher o bem e não o mal. Quando o homem escolhe o mal ele se afasta de Deus.



Sentenças:

- Ame e faça o que quiser.

- Se não existir caridade não existe justiça.

- A suspeita é o veneno da amizade.

- Quem se casa está bem, quem não se casa está melhor.

- O mundo é um livro e quem não viaja lê somente uma página.

- Quem canta reza duas vezes.

- Com caridade o pobre é rico, sem caridade o rico é pobre.

- Errar é humano, continuar no erro é diabólico.

- A ignorância é a mãe da admiração.

- A medida do amor é amar sem medida.

- Os ociosos caminham lentamente e por isso os vícios os alcançam.

- Dai-me a castidade, mas não agora.

- No interior de todo homem existe Deus.





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Edições

Agostinho - Contra Académicos.Coimbra.Atlantida.1957

Agostinho - Confissões. Porto. Liv.Apost. da Imprensa. 1955 (Exista uma edição recente da IN-CM, em Lisboa).

Agostinho - A Cidade de Deus. 3 Vols. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian.

Agostinho - O Mestre. Braga. Fac.de Filosofia de Braga.1982.

Agostinho - Diálogo sobre a Felicidade. Lisboa.Edições 70.

Agostinho - Diálogo sobre a Ordem. Lisboa.IN-CM.2000

Agostinho - Livros do Sililóquio. Lisboa.CEF-UL/Liv.Sá da Costa.1957

Agostinho - Solilóquios e Vida Feliz.São Paulo.Paulus.

Agostinho - O Livre Arbítrio. Braga.FFB

Agostinho - A Trindade. São Paulo.Paulus.2000

Agostinho - Comentário aos Salmos (S. 1-50, S.51-100, S.-101-150). 3 vols. São Paulo. Paulus.

Agostinho - A Verdadeira Religião - Cuidado Devido aos Mortos. São Paulo. Paulus.

Agostinho - A Doutrina Cristã. São Paulo. Paulus.

Agostinho - Comentário à 1ª. Carta de S. João. São Paulo. Paulus.

Agostinho - Cartas (11,102, 120, 130).São Paulo.Paulus.1987

Agostinho - A Virgem Maria (Selecção de Textos).São Paulo. Paulus.

Agostinho - A Graça. 2 Vols. São Paulo. Paulus.

Agostinho - Sobre a Potencialidade da Alma. Petrópolis. Vozes

Agostinho - Dos Bens do Matrimónio. São Paulo.Paulus.2001.



Notas e referências

1. ↑ Wells, J.. Longman Pronunciation Dictionary. 2 ed. New York: Longman, 2000.

2. ↑ The American Heritage College Dictionary. Boston: Houghton Mifflin Company, 1997. pag. 91.

3. ↑ Cross, Frank L.; Livingstone, Elizabeth. The Oxford Dictionary of the Christian Church. Oxford Oxfordshire: Oxford University Press, 2005. Cap. Platonism,

4. ↑ TeSelle, Eugene. Augustine the Theologian. London: [s.n.], 1970. pag. 347-349. March 2002 edition: ISBN 1-57910-918-7.

5. ↑ Durant, Will. Caesar and Christ: a History of Roman Civilization and of Christianity from Their Beginnings to A.D. 325. New York: MJF Books, 1992.

6. ↑ Wilken, Robert L.. The Spirit of Early Christian Thought. New Haven: Yale University Press, 2003. pag. 291.

7. ↑ Archimandrite [now Archbishop] Chrysostomos. "Book Review: The Place of Blessed Augustine in the Orthodox Church". Orthodox Tradition II: 40-43. Página visitada em 28 de junho de 2007.

8. ↑ "'Abençoado', aqui, não significa que ele é menos que um santo, porém é um título concedido a ele como sinal de respeito.""Blessed Augustine of Hippo: His Place in the Orthodox Church: A Corrective Compilation". Orthodox Tradition XIV: 33-35. Página visitada em 28 de junho de 2007.

9. ↑ a b c d e f g h i j k AGOSTINHO DE HIPONA. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina; “Vida e obra” por José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 416 p. (Coleção Os pensadores). Original latim. ISBN 85-13-00848-6.

10. ↑ a b Besen, José Artulino. Agostinho e os Pais do Ocidente. Página visitada em 21 de maio de 2009.

Bibliografia

DILMAN, Ilham. Free will: an historical and philosophical introduction. Florence, KY, USA: Routledge, 1999. LUCENA, Elisa. O problema do mal em Agostinho. Disponível em: . Acesso em: 9 de maio de 2009.

MORAES NETO, Felipe José de; SIMÕES, Adelson Cheibel. O livre-arbítrio e a relação com o Criador, no Livro III, da obra O Livre-Arbítrio de Santo Agostinho. Disponível em: . Acesso em: 9 de maio de 2009

Fontes

AGOSTINHO, Santo. A Instrução dos Catecúmenos: Teoria e Prática da Catequese.

Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2005.

AGOSTINHO, Santo. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística, 7).

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).



Referências

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Editora ENESP, 1999.

MORROU, Henri-Irénée. Santo Agostinho e o Agostinismo. Rio de Janeiro: Ed. Agir, 1957.

PAIVA, Hugo de V. introdução. In: AGOSTINHO, Santo. A Instrução dos Catecúmenos:

Teoria e Prática da Catequese. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2005.

PEREIRA MELO, José Joaquim. A Educação, Em Santo Agostinho. Luzes Sobre a Idade

Média. Terezinha de Oliveira (org.) Maringá: EDUEM, 2002.

PESSANHA, José A. Mota. Vida e Obra. In: Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

(Coleção os Pensadores).

RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus: Mulheres, sexualidade e a

Igreja Católica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1999.

SIQUEIRA ABRÃO, Bernadette. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O PROFETA ZARATHUSHTRA

ZOROTUSHTRA – ZARATHUSHTRA – ZARATUSTRA


No decorrer do final do séc. VII e no início do séc. VI a.C. Zoroastro reformou a religião que os antigos Iranianos tinham herdado de seus antepassados Indo-Iranianos (cerca de 1500 a.C.). Ele viveu e ensinou entre as tribos seminômades do que é atualmente o nordeste do Irã, longe de todo o contato com a civilização das cidades da Babylonia e da parte ocidental do Irã.
A religião que ele pregou espalhou-se por todo o Irã e por outros países, e influenciou o desenvolvimento posterior do Judaísmo, do Cristianismo, e também o pensamento Grego e Islâmico. Os Parsis da Índia – persas que emigraram para a Índia, pressionados pelos muçulmanos - conservam viva, até hoje, a sua religião.

O PROFETA

Zoroastro é a forma Grega do nome Zarathustra no antigo idioma Iraniano. De acordo com a tradição Iraniana, ele viveu “258 anos antes da conquista da Pérsia por Alexandre Magno” em 330 a.C. Considerando que Zoroastro tinha 30 anos quando teve a sua primeira visão, considerando também que ele começou a sua pregação aos 40 anos e que ele converteu o Rei Hystaspes dois anos depois, pode-se determinar que Zoroastro viveu no período de 630 a 553 a.C.
Zoroastro reformou e sistematizou o antigo e tradicional politeísmo Iraniano, dando-lhe uma base ética e moral. Ele pregou não só a reforma religiosa como também a reforma das condições sociais que prevaleciam na época. Com freqüência denunciou a desorganização do nomadismo e lutou pela fixação do homem à terra, introduzindo a prática da agricultura.
Em sua pregação, Zoroastro foi bastante combatido pelos sacerdotes dos antigos cultos e seus seguidores, a quem ele acusou de seguidores do demônio. Embora não se conheça muito de sua vida, pode-se afirmar que Zoroastro foi uma figura histórica e não um mito criado pelas lendas populares. No Zend Avesta, de sua autoria, Zoroastro proclama uma nova filosofia de vida que reflete as esperanças e as dúvidas, os medos, os ódios e os triunfos de uma personalidade marcante.
Após a sua morte, apareceram várias lendas ligadas ao seu nome. Uma delas, por exemplo, dizia que a Natureza festejou o seu nascimento, enquanto que os demônios, que percorriam o mundo em forma humana, fugiram para debaixo da terra. Também se dizia que Zoroastro já nasceu rindo, além de ter falado com Ahura Mazda (o grande deus) e seus anjos, e de ter repudiado Ahriman (o demônio) que o tentou. Zoroastro foi o modelo para todos os sacerdotes e guerreiros, sendo também insuperável na medicina e em todas as artes. As principais fontes destas lendas são os textos Pahlavi, do séc. IX a.C. e as Seleções de Zatspram.
No Ocidente, também foi grande a reputação de Zoroastro, de quem se diz ter sido mestre de Pitágoras. Inúmeros foram os livros, escritos em grego, atribuídos a Zoroastro. Estes livros versavam sobre ciências naturais, astrologia e magia. Tanto os Judeus quanto os Cristãos identificaram Zoroastro com alguns de seus próprios profetas, incluindo Ezequiel e Baruch.
Durante toda a Idade Média ele foi conhecido na Europa apenas como mago. Foi somente no final do séc. XVIII que emergiu uma nova imagem de Zoroastro, devido à ação de estudiosos europeus, liderados por A.H. Anquetil-Duperron. No séc. XIX Nietzshe, visceral inimigo da Igreja Católica, em sua obra “Also sprach Zarathustra” (Assim falou Zaratustra), para atingir seus objetivos literários e filosóficos, mudou a doutrina de Zoroastro, mostrando-o não como um dos primeiros grandes moralistas, como efetivamente foi, mas como o primeiro dos imorais.

A RELIGIÃO À ÉPOCA DE ZOROASTRO

A religião Indo-Iraniana da época de Zoroastro era politeísta e bastante influenciada pelos Vedas da Índia. Mitra e Varuna eram alguns dos deuses adorados pela população, que era dividida em três classes: os governantes e sacerdotes, os guerreiros e o povo. E cada uma destas classes tinha os seus próprios deuses. A classe alta praticava rituais que incluíam o sacrifício de bois e a ingestão de uma bebida sagrada, feita com uma erva chamada soma e que provocava sensações de imortalidade e visões do Nirvana (esta bebida é bastante citada por Bertrand Russel na obra Admirável Mundo Novo). Zoroastro rejeitou o culto de todos estes deuses, exceto um, Ahura Mazda que, em língua Parsi significa “Sábio Senhor”. Este deus já era cultuado na 3.época de Dario I (522-486 a.C.) A origem do demônio é explicada da seguinte maneira no sistema de Zoroastro: no inicio da Criação havia dois espíritos gêmeos, filhos de Ahura Mazda, que escolheram entre o bem e o mal. Um, Ormuzd, escolheu o bem; ele é associado à verdade, à justiça e à vida. O outro, Ahriman, a Mentira, escolheu o mal e é associado à destruição, à injustiça e à morte.
De acordo com Zoroastro o fim do mundo estaria próximo e somente os crentes renasceriam para uma nova vida imortal. Até que isto acontecesse as almas dos mortos atravessariam a “Ponte do Recompensador” de onde as almas boas seriam encaminhadas ao paraíso, e as más seriam enviadas ao inferno para se purificar pelo fogo, de modo a prepará-las para a Renovação Final do Mundo. Em relação aos rituais, Zoroastro condenava tanto os sacrifícios de sangue, (animais eram imolados, principalmente o boi) quanto o sacrifício da ingestão do soma. Ele manteve o sacrifício do fogo, que considerava o símbolo da Verdade e da Ordem. Após a morte de Zoroastro a sua religião expandiu-se vagarosamente para o sul, em direção ao que é agora o Afeganistão, e para o oeste, na direção dos Medas e dos Persas.

OS PRINCÍPIOS ÉTICOS E MORAIS DE ZOROASTRO

Zoroastro ao nascer, ao invés de chorar sorriu, de acordo com a lenda. Essa história traduz muito bem a sua visão positiva e alegre do mundo e de seu destino. O antigo sistema de pensamento de Zoroastro, com todos os seus desdobramentos filosóficos, políticos e religiosos, continua atual em seus desafios e em sua surpreendente abertura para a renovação. A busca de Zoroastro começou como a de muitos dos profetas de então e de agora. Chocado com as contradições da sociedade de sua época e decepcionado com as respostas dadas pelo meio pensante, ele decide fazer a sua própria descoberta. Contudo, a sua busca é diferente das dos outros, por não ter como desencadeante o problema da morte, mas o do estado de convivência social injusto de seu tempo.
É interessante notar, desde logo, que ele começou fazendo perguntas e terminou descobrindo algo que o ajudou a fazer mais perguntas ainda, sem necessariamente acompanhá-las com respectivas respostas. Zoroastro descobriu o que queria, não como uma revelação e nem como coisa privativa sua. Ele encontra o óbvio, o que está escrito nas páginas da vida e que pode ser lido por qualquer um. Ele é uma pessoa comum que, no esforço de seu intelecto e na sensibilidade de seu espírito, consegue ver que este é um mundo bom, criado por um Deus bom e destinado a um estado de alegria radiante.
Constatando isso, ele desenvolve uma proposta que tem tanto uma elaboração filosófica como conseqüências práticas para a vida. A grande questão, colocada para ser resolvida por todos os sistemas filosóficos e religiosos, o bem e o mal, para Zoroastro se resolve dentro da mente humana. O bom pensamento ou boa mente cria e organiza o mundo e a sociedade, o mau pensamento ou má mente faz o contrário. Cabe ao ser humano fazer uma escolha e ele tem o poder e a capacidade de fazê-la.
O Cosmo inteiro está a seu favor quando escolhe a boa mente, enquanto que a má mente isola e, portanto, angustia quem por ela opta. Essa escolha é feita no dia-a-dia da pessoa, em cada ação. Ninguém pode fazer uma opção definitiva, esse é um mecanismo dinâmico e progressivo. Essa escolha não desencadeia a salvação ou perdição de ninguém, porque ela é parte de um processo de aprendizagem contínuo, aberto e reformável de acordo com o contexto. Com o progresso de cada indivíduo também progride o mundo, e assim é acelerado o aperfeiçoamento do universo. O quadro só será completado quando todos tiverem chegado lá, quanto todos estiverem no mesmo nível de progresso.
É como numa orquestra; o concerto só é possível após cada instrumento estar afinado. Aliás, essa é a organização interna de todas as coisas em suas especificidades. A perfeita condição de cada parte garante o perfeito funcionamento do todo. Essa descoberta de Zoroastro levou a conclusões inusitadas e revolucionárias. Acenou com uma nova organização social e uma nova religião. A religião baseada no medo do mistério e no apaziguamento de suas forças através da magia e da expiação não fazia mais sentido. Ele descobrira a religião da alegria participativa. Admirada pelo do fato de ser parceira de Deus em seu projeto para a humanidade, através de um processo de livre escolha e de colaboração, a pessoa responde com o cultivo da Boa Mente, de Boas Palavras e de Boas Ações. Essa é a ética da responsabilidade.
Esse esforço, que inicialmente é individual e continuará a sê-lo, recebe, contudo o poder transformador de Deus, que traz em si todas as virtudes: justiça, retidão, cooperação, verdade, bondade etc. O poder transformador de Deus age no mundo em todos os setores e especialmente nas pessoas que lhe abrem a mente. Ele incentiva e capacita o ser humano à escolha e à prática do bem.
As pessoas que vão descobrindo a capacidade que têm de fazer essa opção vão se unindo na descoberta natural de que são parte de um todo magnífico, que se forma em parceria com Deus. Nesse sistema não há lugar de destaque a fé ou para a crença. Não é necessário crer; é preciso saber e agir de acordo com o que se sabe. Temos aqui, então, a religião do conhecimento. É a razão que se sobrepõe à fé e à emoção.
A visão de mundo de Zoroastro não coloca o ser humano como o centro, o motivo de ser do planeta. Ao contrário, uma das tarefas dadas pelo pensamento de Zoroastro é que o ser humano ache o seu lugar no mundo de forma harmoniosa, de modo a não desequilibrar o seu meio. Reverenciar e proteger a terra, a água, o ar e o fogo, além dos outros seres viventes, é uma preocupação constante que aparece no pensamento de Zoroastro. Não há diferença de raças ou de gênero em Zoroastro. O Deus descoberto por Zoroastro não é tribal e não tem um povo escolhido dentre os outros povos. Tanto o homem como a mulher pode tomar a liderança, mesmo nos ritos religiosos.
Talvez o que há de melhor em Zoroastro seja a abertura, quase desafio para se seguir adiante perguntando, descobrindo, mudando, e tudo isso, num movimento dinâmico de progresso. Nada está fechado numa ortodoxia oficial. Em seus cânticos ele faz 93 perguntas e as deixa sem respostas. Está ausente ali a arrogância de dono de uma verdade estática e acabada. E isso não traz insegurança e sofrimento, antes, a certeza de que o que importa está além e acima das idéias. A doutrina de Zoroastro ensina a emancipação e a autonomia do indivíduo. Só a partir disso se torna possível a descoberta do próximo como pessoa e, conseqüentemente, a criação da comunidade. Não há lugar nessa visão para qualquer anulação do ego. Ao contrário, o ego é reafirmado e colocado como base do encontro com o próximo. Se sadio e bem amado, o ego forte é poderoso na capacidade de doação e desprendimento.
A sociedade é para ser organizada dentro desses princípios de livre escolha, da boa mente e da busca do bem de todos os seres. Os líderes têm que ser escolhidos por serem justos e equilibrados. Zoroastro, apesar das dificuldades que enfrenta em seu tempo e que, também desencadeiam a sua busca, não vê o mundo como arruinado, do qual urge fugir e se possível salvar alguns. Antes, o mundo é uma obra em fase de construção, ao qual somos convidados a unir criativamente as nossas vidas. Essa visão de mundo provoca uma ética diferente da que dominou o mundo ocidental, que recorre à punição/recompensa como veículo principal de estímulo ou contenção. A prática profunda desse pensamento na sociedade não teria criado um sistema judiciário com prisões. O ser humano não está contaminado pelo pecado, antes, pelo contrário, capacitado para escolher a boa mente e para construir um mundo diferente e melhor. Uma leitura de Zoroastro com essa abundância de negações não lhe faz justiça. O contexto judaico cristão onde estamos inseridos, porém, nos obriga a usar esses termos, pelo menos num primeiro momento. Resgatado e atualizado, esse velho pensamento pode fornecer material para a ética que precisamos nesse nosso tempo. Ele é aberto, estimula o conhecimento e a pesquisa, é ecológico, inclusivo e pode ser também fonte de uma profunda e rica espiritualidade.

O PERÍODO SASSÂNIDA

Com o início de uma nova dinastia nacional Persa, os Sassânidas, em 224 d.C., a religião de Zoroastro foi oficializada no país. A sua hierarquia detinha considerável poder político, e as outras religiões (Cristianismo, Maniqueísmo e Budismo) foram perseguidas. O Avesta foi compilado, editado e traduzido com comentários explicativos, em Pahlavi, dialeto de uma região do centro da Pérsia. A esta tradução comentada chama-se Zend. Daí o nome Zend-Avesta, dado ao livro sagrado dos seguidores de Zoroastro. As últimas obras do período Pahlavi informam que a religião de Zoroastro incorporou contribuições Gregas e Indus. As idéias gregas podem ser identificadas nos mitos cosmológicos; o mundo foi criado inicialmente no estado espiritual, uma espécie de Matéria Prima no sentido aristotélico; e a origem do mundo material é atribuída à condensação gradual do elemento sutil – a Luz – através de sucessivos estágios, começando pela Água, depois pela Terra e finalmente por todas as formas de matéria densa. Durante o período Sassânida prevaleceu no reino persa a doutrina de Mazda, ou mazdeismo.

PERÍODO PÓS-CONQUISTA MUÇULMANA

Sob o domínio árabe, a maior parte da população foi forçada a abraçar o Islam, mas a religião de Zoroastro foi tolerada até certo ponto, conseguindo sobreviver por mais trezentos anos. Entre os séc. IX e X da era cristã, a perseguição muçulmana levou os remanescentes do Zoroastrianismo a emigrar do Irã para a Índia, para a região de Bombaim, no Hindustão. Os descendentes destes Zoroastrianos foram os primeiros, na Índia, a receber a influência Européia, tornando-se os melhores colaboradores dos ingleses, que sucederam os portugueses no domínio do continente indiano. No séc. XIX os remanescentes da religião de Zoroastro na Índia, chamados Parsis, retomaram o contato com os alguns remanescentes da mesma religião no Irã, os Gabars, formando atualmente as duas únicas comunidades praticantes do Zoroastrianismo.

A LITERATURA ZOROASTRIANA

Esta literatura divide-se em duas partes: o AVESTA, trabalho original escrito na antiga língua Iraniana chamada Avistak, e os textos escritos muito mais tarde, em língua Pahlavi ou Persa, dialeto da região central da Pérsia. A palavra Zend significa “interpretação” e é empregada para indicar a tradução e os comentários explicativos da maior parte do Avesta, existentes em língua Persa. Daí o nome Zend-Avesta - o Livro Sagrado da religião de Zoroastro.
A transvaloração nietzschiana de Zaratustra: de profeta dualista a anticristão aniquilador da moral. A partir das freqüentes referências ao cristianismo e ao zoroastrismo presentes em Assim falou Zaratustra, investigaremos as possíveis intenções filosóficas de Nietzsche com este inusitado diálogo. Para tanto, inicialmente ressaltaremos a importância de Assim falou Zaratustra dentre as obras de Nietzsche e destacaremos algumas das principais alusões críticas feitas às doutrinas cristã e zoroástrica ao longo deste livro. Explicitaremos que o zoroastrismo é escolhido como objeto privilegiado de crítica por ser considerado como momento inaugural de uma interpretação moral da existência, difundida através de uma teologia metafísica e dualista. Também mencionaremos que as críticas ao cristianismo foram motivadas por razões semelhantes, sobretudo, pelo fato de ele ter sido identificado como um dos principais propagadores de uma avaliação moral que julga a vida e tenta corrigi-la a partir de parâmetros transcendentes com pretensões universais. Posteriormente, apresentaremos a hipótese de que em Assim falou Zaratustra é efetuada uma transvaloração dos valores professados pelo cristianismo e zoroastrismo, através de uma apropriação paródica-crítica de suas doutrinas. Finalmente, enfatizaremos que o Zaratustra de Nietzsche se distancia da perspectiva valorativa destas tradições por expressar uma avaliação genealógica do valor dos valores, pautada pela afirmação imanente da vida, entendida enquanto vontade de potência.
Nietzsche considerava Assim falou Zaratustra como um de seus principais livros, talvez o mais importante deles. Em Ecce homo, onde discorre sobre aspectos de sua vida e comenta todas as suas publicações, o lugar de destaque atribuído à obra é perceptível desde o Prólogo: Entre minhas obras ocupa o meu Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é não apenas o livro mais elevado que existe, autêntico livro do ar das alturas – o inteiro fato homem acha-se a uma imensa distância abaixo dele –, é também o mais profundo, o nascido da mais oculta riqueza da verdade, poço inesgotável onde balde nenhum desce sem que volte repleto de ouro e bondade. (EH, “Prólogo”, §4).
O capítulo que dedica ao elogio de Assim falou Zaratustra é o mais longo dentre os destinados a comentar suas publicações e em todos os outros quatro capítulos que integram Ecce homo1, o livro é mencionado. Nietzsche chega a se identificar com seu protagonista ao sugerir que os nomes do músico Richard Wagner e do filósofo Arthur Schopenhauer, elogiados em algumas de suas obras de juventude, sejam substituídos pelo seu próprio nome ou pelo de Zaratustra. (EH, “O nascimento da tragédia”, §4 e “As extemporâneas”, §3). 1 Os demais capítulos de Ecce homo, além do Prólogo e dos dedicados especificamente a comentar as publicações de Nietzsche, são: “Por que sou tão sábio”, “Por que sou tão inteligente”, “Por que escrevo tão bons livros” e “Por que sou um destino”. 2 A primeira e a segunda parte de Assim falou Zaratustra- um livro para todos e para ninguém (Also Sprach Zarathustra - Ein Buch für Alle und Keinen) foram redigidas e publicadas em 1883, a terceira em 1884 e a quarta e última em 1885. Os livros de Nietzsche publicados após Assim falou Zaratustra, além de Ecce homo (1908), foram respectivamente: Além do bem e do mal (1886), Genealogia da moral (1887), O caso Wagner (1888), Crepúsculo dos ídolos (1889), Nietzsche contra Wagner (1889) e O anticristo (1895). 3 O nome Zarathustra é, habitualmente, traduzido para português como Zoroastro ou Zaratustra. Convencionamos utilizar Zoroastro para nos referirmos ao místico oriental e Zaratustra para designar o personagem de Nietzsche.
Não apenas em sua autobiografia intelectual (Ecce homo), mas em todos os escritos posteriores à publicação das quatro partes que compõem Assim falou Zaratustra, Nietzsche enaltece este livro como ápice da expressão das principais noções de sua filosofia.2 A ponto de se referir a suas obras subseqüentes, Além do bem e do mal e Genealogia da Moral, como glossários explicativos para sua compreensão e afirmar que o livro dedicado à apresentação de seu projeto de transvaloração de todos os valores, O Anticristo, se destina somente para os poucos extemporâneos que, eventualmente, tenham compreendido Zaratustra: Este livro é para pouquíssimos. E talvez eles ainda não vivam. Seriam aqueles que compreendem meu Zaratustra: como poderia eu me confundir com aqueles para os quais há ouvidos agora? – Apenas o depois de amanhã é meu. Alguns nascem póstumos. (AC, “Prólogo”). Diante da extrema importância que Nietzsche atribui a Assim falou Zaratustra, surge a inevitável dúvida sobre as possíveis razões que o teriam levado à escolha de um protagonista tão improvável para figurar nas páginas deste livro, desde o título, tão exótico e enigmático. Afinal, quem teria sido Zaratustra e por que escolhê-lo para protagonizar uma obra filosófica que se pretende transvaloradora de valores? Zoroastro3 teria vivido por volta do século VII a.C. na Pérsia (região hoje correspondente ao território político do Irã) e sido o fundador do zoroastrismo (também A transvaloração nietzschiana de Zaratustra conhecido como mazdeísmo). De acordo com uma das principais versões difundidas pela tradição desta doutrina, aos 30 anos de idade ele teve uma revelação mística através da visão do deus Ahura-Mazdâ (sábio senhor ou o senhor da sabedoria) onde lhe foi conferida a missão de pregar “o valor mais alto” da verdade, retidão e ordem. Enquanto profeta desta divindade compôs hinos místicos em seu louvor, intitulados Avesta, dos quais foram preservados apenas, aproximadamente, 1/4, dos textos litúrgicos originais.4 Ciente da dúvida que surgiria sobre as razões que o teriam levado a resgatar este místico oriental, morto há quase três milênios, para sua filosofia, em Ecce homo, Nietzsche explicita alguns de seus motivos: O que precisamente em minha boca, na boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra: pois o que constitui a imensa singularidade deste persa na história é precisamente o contrário disso. Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas – a transposição da moral para o metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão já seria no fundo a resposta. Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em conseqüência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo. (EH, “Por que sou um destino?”, §3. Grifos nossos). 4 Para uma análise mais detalhada do Zoroastrismo e da relação de Nietzsche com este pensamento, Cf. FERNANDES, E. As origens históricas do Zaratustra nietzschiano. 5 Utilizamos o termo "maniqueísmo" em sua acepção coloquial de rígida delimitação e oposição entre "o bem" e "o mal", sem qualquer alusão à doutrina dualista posteriormente criada pelo também profeta persa Manes (ou Mani) no século III d.C. Nietzsche aponta Zoroastro como principal responsável pela interpretação moral e maniqueísta5 da existência que veio a exercer profunda influência no pensamento ocidental. Ele quem teria instituído pares valorativos metafísicos dicotômicos para ajuizar a vida. Então, por que Nietzsche, autoproclamado “primeiro imoralista”, nomeou o ímpio protagonista de uma de suas principais obras “aniquiladoras da moral” precisamente com o nome daquele que considera como tendo sido o primeiro metafísico moralista? Certamente que Nietzsche, com o seu Zaratustra, não deseja fazer algum tipo de apologia mística ao dogmatismo e à transcendência. As inúmeras referências feitas às doutrinas e práticas de certas tradições religiosas não têm a intenção de enaltecê-las, mas de parodiá-las criticamente com o intuito de transvalorar os discursos místicos dogmáticos de tom profético. É o próprio Nietzsche quem esclarece: Aqui [em Assim falou Zaratustra] não fala nenhum “profeta”, nenhum daqueles horrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados fundadores de religiões. É preciso antes de tudo ouvir corretamente o som que sai desta boca, este som alciônico, para não se fazer deplorável injustiça ao sentido de sua sabedoria [...] Aí não fala um fanático, aí não se “prega”, aí não se exige fé: é de uma infinita plenitude de luz e profundeza de felicidade que vêm gota por gota, palavra por palavra – uma delicada lentidão é a cadência dessas falas. Tais coisas alcançam apenas os mais seletos; ser ouvinte é aqui um privilégio sem igual; não é dado a todos ter ouvidos para Zaratustra. (EH, “Prólogo”, §4).
Consideramos que uma boa chave interpretativa para elucidar a questão da escolha do nome “Zaratustra” encontra-se no vigésimo primeiro discurso da primeira parte de Assim falou Zaratustra: “Da morte voluntária”, "Da morte livre" (Vom freien Tode). Discurso que contém a única passagem ao longo de todo o livro onde se alude nominalmente a um personagem tido por histórico, Jesus: Cedo demais morreu aquele hebreu venerado por todos os pregadores da morte lenta; e foi fatal, desde então, para muitos, que morresse cedo demais. Ainda não conhecia senão as lágrimas e a tristeza dos hebreus, justamente com o ódio dos bons e dos justos, – o hebreu Jesus; assaltou-o, então, o anseio da morte. Tivesse permanecido no deserto e longe dos bons e dos justos! Talvez aprendesse a viver e aprendesse a amar a terra – e a amar, também, o riso! Acreditai-me, meus irmãos! Morreu cedo demais: abjuraria ele mesmo a sua doutrina se tivesse chegado à minha idade! Nobre bastante, era ele, para fazê-lo. (ZA, “Da morte voluntária”. Grifos nossos).
Esta passagem evidencia que o objetivo de Nietzsche é o de “reverter”, “transvalorar” (Umwerten) o legado de Jesus e Zoroastro no que concerne às suas interpretações morais da existência e que deseja fazê-lo através de uma “autocrítica interna”, “auto-superação”, “auto-supressão” (Selbstaufhebung). Revive Zoroastro como personagem e parodia diversas passagens da suposta vida e doutrina de Cristo para fazer com que os próprios criadores e mantenedores do “mais fatal dos erros” (a metafísica moral dualista) reavaliem seus posicionamentos. Através da escolha de Zaratustra como protagonista e do intenso diálogo paródico-crítico com a tradição cristã, os criadores de algumas das mais influentes avaliações niilistas da existência são convocados para que eles próprios as “corrijam” e revertam seus efeitos nocivos. Aos 30 anos de idade Zoroastro teve sua revelação mística fundamental e tornou-se profeta de Ahura-Mazdâ. Aos 30 anos Jesus foi batizado pelo profeta João Batista e A transvaloração nietzschiana de Zaratustra iniciou sua pregação pública (Lucas 3, 23). Aos 30 anos, idade em que os dois místicos enquanto batizados, “renascidos”, iniciam suas tentativas de doutrinação do povo com o intuito de angariar fiéis, o Zaratustra nietzschiano opta pelo silêncio e solidão. Parte para a reclusão em uma caverna no topo de uma montanha: “deixou Zaratustra sua terra natal e o lago de sua terra natal e foi para a montanha. Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da solidão, sem deles se cansar”. (ZA, “O prólogo de Zaratustra”, §1). Ele próprio segue o “conselho” que destina a Jesus: durante 10 anos permaneceu no deserto “longe dos bons e dos justos” até que, aos 40 anos, finalmente aprendeu a “viver, a amar a terra e o riso”. Desde o começo de Assim falou Zaratustra a subversão da mitologia cristã é clara: com a idade em que Jesus principiou seu ensino para a multidão, Zaratustra iniciou seu aprendizado solitário. No mesmo momento cronológico em que Jesus e Zoroastro consideraram-se “prontos” e apresentaram-se como “renascidos”, o Zaratustra nietzschiano partiu para seu processo de “aprimoramento”, para sua morte metafórica: “Tivesse [Jesus] chegado à minha idade teria abjurado ele próprio sua doutrina”. Jesus não poderia saber o que Zaratustra descobre ao fim de seu isolamento porque “morreu cedo demais”. Era ainda inexperiente para o duro aprendizado trágico que carece de maturação e coragem para ser devidamente vivenciado e compreendido. Através de seu Zaratustra, Nietzsche retoma filosoficamente a vida de Cristo. Faz com que ele efetivamente conheça algo além das “lágrimas e tristeza dos hebreus” e do “ódio dos bons e dos justos”. O Jesus parodiado em Assim falou Zaratustra tem sua vida continuada a partir do ponto em que foi abruptamente interrompida, de acordo com o cânone literário cristão. Na apropriação nietzschiana, o messias, convertido em profeta de valores imanentes, deixa de ser venerado pelos “pregadores da morte lenta”, pois se livrou do “anseio da morte”, tendo se tornado um afirmador da existência. Nietzsche dota o principal divulgador do “mais fatal dos erros” da maturidade necessária para perceber o intenso niilismo de seu legado. Apura sua percepção e o converte em aliado que toma a seu próprio encargo a incumbência de “desfazer” aquilo que imprudentemente difundiu outrora. “O hebreu” se tornou venerado pelos “pregadores da morte lenta” por, supostamente, ter inventado um outro mundo para denegrir a este, “um lado-de-lá para difamar melhor o lado-de-cá”. (NT, "Tentativa de autocrítica", §5). O cristianismo atribuiu-lhe a responsabilidade de ter apresentado a negação da existência como uma “boa nova” (significado da palavra “evangelho”). Em contrapartida, o Zaratustra nietzschiano se auto-intitula um “mensageiro alegre como nunca houve” (EH, “Por que sou um destino?”, §1) por restituir à Terra, ao corpo e aos sentidos a inocência que lhes é própria e havia sido maculada pela moralista e detratora interpretação cristã da vida. Contudo, cabe ressaltar que as críticas de Nietzsche são mais direcionadas aos rumos tomados pelo cristianismo do que à pessoa do Cristo propriamente dita, como se pode perceber, por exemplo, no aforismo 39 de O anticristo (cujo título Der Antichrist pode ser igualmente traduzido por "O anticristão"): Já a palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo, houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz. O “evangelho” morreu na cruz. O que desde então se chamou “evangelho” já era o oposto daquilo que ele viveu: uma “má nova”, um disangelho. (AC, §39). Apropriação semelhante ocorre com Zoroastro que teve sua vida “reescrita” por Nietzsche a partir de seu momento mais significativo, da suposta revelação mística de sua doutrina. Em Assim falou Zaratustra são raros os momentos em que o passado do protagonista é mencionado. “O prólogo de Zaratustra” apenas informa que “ele deixou o lago de sua terra natal e foi para a montanha”, porém, em outros textos de Nietzsche, há variações deste trecho com importantes acréscimos: no último aforismo do livro IV de A Gaia Ciência está escrito que “Quando Zaratustra fez trinta anos de idade, abandonou sua terra e o lago de Urmi e foi para as montanhas.” (GC, §342. Grifos nossos) e, em um fragmento póstumo da época em que Nietzsche redigia a primeira parte do livro, lê-se: “Zaratustra, nascido às margens do lago Urmi, deixa aos trinta anos a sua pátria, dirige-se para a província de Aria e, em dez anos de solidão, compõe o Zend-Avesta.” (Apud HALEVY, p.197. Grifos nossos). Estas diferentes versões do início da narrativa evidenciam quão significativa é a presença de elementos diretamente vinculados à mitologia zoroástrica. Foi o profeta persa Zoroastro quem nasceu nas margens do lago Urmi, tendo posteriormente ido para Aria, local onde após um período de meditação no interior de uma caverna, escreveu o Avesta. Passagens como estas nos levam a cogitar a possibilidade de que a vida de Zaratustra anterior ao período relatado no livro de Nietzsche consista precisamente na vida de Zoroastro.6 Apesar de Nietzsche alegar, de modo bastante suspeito, só ter descoberto o significado etimológico do nome "Zaratustra" após a escrita de seu livro e por mero acaso, como se pode ler na carta enviada para Peter Gast (apelido de Johann Heinrich Köselitz) em 23 de Abril de 1883: “pode-se pensar que toda a concepção de meu pequeno livro [Assim falou Zaratustra] tem sua raiz nessa etimologia [do nome Zaratustra], mas até hoje eu nada sabia sobre ela.” (Nietzsche identifica “estrela dourada”, “estrela de ouro” como tradução de Zarathustra). A transvaloração nietzschiana de Zaratustra Tendo em vista o intenso diálogo que Nietzsche estabelece com esta doutrina, não seria excessivo supor que o Zaratustra anterior à subida na montanha rumo à caverna, aos 30 anos de idade, é Zoroastro. Aquele que, de acordo com a tradição do Zoroastrismo, teve sua revelação fundamental em estado de meditação justamente no interior de uma caverna. Da meditação solitária na escuridão de sua caverna, Zoroastro trouxe o “ouro reluzente” de sua doutrina. Metáfora que incorporou ao próprio nome que mudou para simbolizar este seu duplo nascimento. Dividiu sua vida em antes e depois do suposto encontro místico com o deus Ahura-Mazdâ. Contudo, a “áurea” doutrina de Zoroastro se converte em um pesado fardo de cinzas nas mãos do Zaratustra de Nietzsche uma vez que o que liberta Zoroastro aprisiona Zaratustra: “Sofredor, superei a mim mesmo, levei a minha cinza para o monte e inventei para mim uma chama mais clara”. (ZA, “Dos trasmundanos”). E é igualmente no interior de uma caverna que Zaratustra passa pela transvaloração que o “transforma” em profeta de valores imanentes que emancipam os homens de sua subserviência à transcendência.
Assim, podemos compreender que o livro, desde o Prólogo, mostra justamente esta transvaloração de um profeta dualista em um anticristão aniquilador da moral. Mas qual a necessidade de transvalorar determinados valores? Quais os valores criticados e quais os enaltecidos a partir da avaliação nietzschiana? Por quais valores o Zaratustra de Nietzsche baliza seus comportamentos e em que eles se diferenciam dos valores morais cristãos e dos propagados por Zoroastro?
Possíveis respostas a estas questões podem ser encontradas em Genealogia da moral – uma polêmica, livro composto por “três decisivos trabalhos de um psicólogo, preliminares a uma transvaloração de todos os valores” (EH, “Genealogia da moral – um escrito polêmico”). O objetivo principal deste “escrito polêmico”, redigido por Nietzsche como glossário explicativo para a compreensão de Assim falou Zaratustra, não é o de apresentar teorias historiográficas sobre a possível origem dos juízos de valor morais, mas identificar o valor destes valores. A principal questão que norteia a obra é a de avaliar se os juízos de valor morais vigentes são manifestações de vida ascendente que promove crescimento, força, coragem e revela plenitude, ou de vida descendente, que obstrui o crescimento do homem. (Cf. GM, “Prólogo”, §3).
No fundo são duas as negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um lado, um tipo de homem que até agora foi tido como o mais elevado, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado uma espécie de moral que alcançou vigência e domínio como moral em si – a moral de decadence, falando de modo mais tangível, a moral cristã. Seria legítimo ver a segunda contestação como a mais decisiva, pois a superestimação da bondade e da benevolência já me parece, de modo geral, conseqüência da decadence, sintoma de fraqueza, incompatível com uma vida ascendente e afirmadora: o negar e o destruir são condição para o afirmar. (EH, “Por que sou um destino”, §4).
Ao término de sua avaliação genealógica do valor dos valores, Nietzsche diagnostica que os juízos morais correntes na modernidade ocidental são indícios de miséria, empobrecimento e degeneração de vida. Responsabiliza a decadência dos valores morais pelo fato de o homem ainda não ter alcançado seu “supremo brilho e potência” (Cf. GM, “Prólogo”, §6). Avalia que tais valores requerem uma intensa crítica e, ao apontar Zaratustra como contra-ideal ao sistema “compacto de vontade, meta e interpretação” vigente, dá a entender ter realizado em Assim falou Zaratustra a crítica radical que reivindica como necessária em Genealogia da moral. (Cf. GM, II, §24 e §25). Um dos principais aspectos ressaltados por Nietzsche com relação aos valores é que “foram os homens a dar a si mesmos o seu bem e o seu mal [...] não o tomaram, não o acharam, não lhes caiu do céu em forma de voz.” (ZA, “De mil e um fitos”). Ou seja, apesar de habitualmente o valor dos valores ser considerado “como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento” (GM, “Prólogo”, §6), em realidade, ele foi criado e conferido pelos homens. Em Genealogia da moral Nietzsche recorda que a própria palavra “homem [Mensch, em alemão] designava-se como o ser que mede valores, valora e mede, como „o animal avaliador‟.” (GM, II, §8). Cabe ao homem, portanto, a irrevogável tarefa de avaliar e atribuir sentido e valor. A postura humana diante da vida não é neutra, mas sempre “interessada”, “afetiva”, “apaixonada” e se manifesta, fundamentalmente, a partir do corpo.
No quarto discurso da primeira parte de Assim falou Zaratustra, “Dos desprezadores do corpo” (Von den Verächtern des Leibes), Nietzsche apresenta sua concepção de corpo:
"Eu sou todo corpo e nada além disso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo.” [...] Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo.
Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então, precisaria logo da tua melhor sabedoria? A transvaloração nietzschiana de Zaratustra: O teu ser próprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. “Que são, para mim, esses pulos e vôos do pensamento?”, diz de si para si. “Um simples rodeio para chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador dos seus conceitos. (ZA, “Dos desprezadores do corpo”). O corpo, entendido como “ser próprio”, “si mesmo” (das Selbst) é aquele que efetivamente avalia e conduz o homem. Corpo e homem são indissociáveis (uma só e a mesma coisa) e sinônimos daquilo que é imanente e, inevitavelmente, interessado e atribuidor de valores. A antítese desta conduta, um comportamento supostamente desinteressado, “diz-se, em alemão, selbstlos, o que, ao pé da letra, significa „sem si mesmo‟, isto é, para Nietzsche, sem um eu, sem um ser próprio.” (Nota nº49 do tradutor de Assim falou Zaratustra). O desinteresse é, portanto, o oposto de um corpo enquanto “ser próprio”, “si mesmo”, tal qual compreendido por Nietzsche. Esta concepção é bastante distinta da noção moderna de subjetividade que pressupõe a existência de um sujeito uno, pré-determinado, distinto do corpo e soberano no comando de todas as funções, inclusive corporais. Isto porque Nietzsche não considera o “sujeito” como inato e passível de ser “descoberto” pelo homem, mas como um constructo de unidade apenas aparente; apesar de nem sempre ser reconhecido como dotado deste caráter poiético ("criador") que lhe é próprio. Esta peculiar compreensão de corpo e subjetividade está diretamente relacionada à noção de vida como vontade de potência. Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder7 (...) a própria vida me confiou [este segredo]: “Vê”, disse, “eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo.” (ZA, “Do superar a si mesmo”). 7 Como se trata de uma citação, preservamos a opção do tradutor, mas ao longo do texto privilegiamos a expressão "vontade de potência" como tradução de Wille zur Macht "por considerar que ela resgata, em certa medida, o dinamismo expresso pela partícula 'zur' (que contém a idéia de 'em direção a'), transpondo-o para o substantivo 'potência', como algo em devir, não mero 'objeto' de uma vontade que lhe seria, por assim dizer, exterior. Tal solução apresenta ainda a vantagem de evitar leituras apressadas e equivocadas do conceito nietzschiano de 'Wille zur macht', que dá inteligibilidade à natureza, à própria vida, confundindo-se com a tendência de todo elemento vital (mesmo no nível das pulsões, dos instintos) a aumentar e intensificar a própria potência." (FERRAZ, M. Nietzsche – o bufão dos deuses, nota 39, p. 66).
Nietzsche não considera o corpo como dotado de uma vontade única, mas composto por uma pluralidade de vontades divergentes entre si. Permanente “campo de batalha” entre distintos estímulos em constante embate. Mas apesar da “guerra” ininterrupta entre esta multiplicidade, a direção é única. A cada momento, uma determinada vontade alcança predomínio sobre as demais e submete as restantes, conferindo-lhes o sentido que deseja. E a configuração que enseja predominância a certa vontade é provisória, logo cede lugar a outro conflito do qual advirá novo resultado igualmente transitório. O corpo humano é caracterizado como “uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”. (ZA, “Dos desprezadores do corpo”). Pois, a cada momento, o “rebanho de vontades” que constitui o corpo humano entra em conflito, do qual “sai vitorioso” determinado “pastor” a conduzir sua direção, mas que no próximo instante será substituído pelo novo vitorioso do conflito subseqüente. O estado de permanente movimento e guerra entre as vontades que formam o corpo se justifica pelo fato de que a vontade tematizada por Nietzsche é entendida como vontade de potência (Wille zur Macht). Ou seja, ela não busca a comodidade e a inércia através de conservação e repouso, mas o constante aumento de potência através de expansão e auto-superação.8 Das posturas que mais se distanciam da afirmação da vida enquanto vontade de potência, tal qual anunciada por Zaratustra, é a daqueles que pautam suas condutas pela vontade de verdade: "Vontade de conhecer a verdade” chamais vós, os mais sábios dentre os sábios, àquilo que vos impele e inflama? Vontade de que todo o existente possa ser pensado: assim chamo eu à vossa vontade! Quereis, primeiro, tornar todo o existente possível de ser pensado; pois, com justa desconfiança, duvidais que já o seja. Mas ele deve submeter-se e dobrar-se a vós! Assim quer a vossa vontade. Liso, deve tornar-se, e súdito do espírito, como seu espelho e reflexo. É essa a vossa vontade, ó os mais sábios dentre os sábios, como vontade de poder, e também quando falais do bem e do mal e das apreciações de valor. Quereis ainda criar o mundo diante do qual possais ajoelhar-vos: tal é a vossa derradeira esperança e embriaguez. (ZA, “Do superar a si mesmo”). 8 Para melhor compreensão do caráter intrinsecamente “expansivo” e criador da vontade de potência, Cf. DIAS, Rosa Maria. “A vida como vontade criadora: uma visão trágica da existência”.
Zaratustra questiona a existência de alguma verdade absoluta, subjacente à vida tal qual ela se apresenta, que possa vir a ser descoberta através de processos cognitivos: “Nunca, até aqui, andou a verdade de braço dado com qualquer ser absoluto” (ZA, “Das moscas da feira”). Ele critica a possibilidade de existir um “imaculado conhecimento” objetivo, capaz de descortinar alguma natureza pretensamente mais íntima e A transvaloração nietzschiana de Zaratustra fundamental da vida. Para Zaratustra, conhecer é criar 9, pois o conhecimento é produzido através de avaliação valorativa empreendida pelo “ser próprio” (“si mesmo”), ou seja, pelo corpo humano. É uma manifestação imanente e perspectiva da vontade de potência, já que os valores vitais não são da ordem da descoberta ou adequação, mas criados pelos próprios viventes. De modo que aquele que deseja “encontrar”, antes, deve criar, posto que “sem a avaliação, seria vazia a noz da existência” (ZA, “De mil e um fitos”).10 A crítica de Nietzsche é direcionada, principalmente, para aqueles que não acatam o caráter criador, múltiplo e belicoso da vida e pautam suas condutas, não pela expansão e auto-superação da vontade de potência, mas pela conservação e adequação da vontade de verdade. Comportamento que, em última análise, consiste em uma “fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo.” (NT, §15). 9 “Avaliar é criar: escutai-o, ó criadores! O próprio avaliar constitui o grande valor e a preciosidade das coisas avaliadas.” (ZA, "De mil e um fitos"). 10 Para um estudo mais detido da questão do conhecimento em Nietzsche, particularmente em Assim falou Zaratustra, Cf. FOGEL, G. Conhecer é criar – um ensaio a partir de F. Nietzsche. Tanto o cristianismo quanto o zoroastrismo são apontados, por Nietzsche, como exemplares desta vontade de verdade que julga e condena a vida a partir de parâmetros transcendentes. São igualmente avaliados como representantes de posturas niilistas negadoras da existência, pois tentam corrigir a vida a partir de valores heterônomos a ela, que se arrogam o status de normas universais. Já o Zaratustra de Nietzsche não se norteia por parâmetros absolutos, por alguma tábua de valores criada pela vontade de verdade. Antes, afirma o caráter perspectivo da vida enquanto vontade de potência e toma como critério avaliativo a intensidade de sua expansão e auto-superação. Zaratustra destrói as velhas tábuas de valor que impõem o que é bom e mau sem, contudo, substituí-las por novas com outros valores absolutos. Não se anuncia como a meta a ser atingida, mas como profeta. O que não significa que deseje ser encarado como novo pastor de rebanhos, antes, sua intenção é oposta: “Atrair muitos para fora do rebanho – foi para isso que vim” (ZA, “Prólogo”, §9) e não para angariar discípulos que o sigam irrefletidamente. Ao invés de censurar aqueles que “o negam”, como fez Jesus com relação ao apóstolo Pedro (Mateus 26, 34), Zaratustra incentiva a divergência em prol da autonomia, pois visa à liberdade e emancipação daqueles que optam por acompanhá-lo. O objetivo de seu ensino não é o de conquistar meros seguidores . discípulos, mas companheiros igualmente aptos para a tarefa de criar valores imanentes, intensificadores da vida, através da afirmação da vontade de potência. Compreendem-me?... A auto-superação da moral pela veracidade, a auto-superação do moralista em seu contrário – em mim – isto significa em minha boca o nome Zaratustra. (NIETZSCHE, F. EH, “Por que sou um destino?”, II, §3).

A COSMOLOGIA

A Cosmologia de Zoroastro concebe a história do mundo como um grande drama dividido em quatro períodos de 3.000 anos cada um. Num passado de duração infinita existiu Ormuzd, que era a Luz, e Ahriman, que habitava a escuridão e as profundezas. Ao final dos primeiros 3.000 anos Ahriman atravessou o vácuo que os separava e atacou Ormuzd que, percebendo que a luta só teria fim se fosse realizada com regras finitas, fez um pacto com Ahriman, limitando a duração de sua luta. Ele então recitou a Ahuna Vairya, a oração mais sagrada dos seguidores de Zoroastro. Ahriman, apanhado de surpresa, caiu no abismo onde permaneceu por mais 3.000 anos, Durante este período Ormuzd fez a Criação dos seres, os espirituais em primeiro lugar, e em seguida a criação material correspondente – céu, água, terra, plantas. Em seguida, ofereceu às almas pré-existentes a escolha entre permanecer para sempre como energia pura, como espíritos, ou encarnar no mundo físico de modo a assegurar o seu triunfo sobre Ahriman; eles escolheram nascer e combater. Nesse meio tempo, Ahriman gerou seis demônios e uma criação material oposta à dos seres criados por Ormuzd. No final do segundo período de 3.000 anos Ahriman, instigado pela Mulher Primordial, a Prostituta, atacou o céu e corrompeu a criação de Ormuzd. No terceiro período, Ahriman triunfa no mundo material, mas é incapaz de escapar dele. Enganado por Ormuzd, ele é sentenciado à sua própria destruição. O início do último período testemunha a chegada da religião na Terra e o nascimento de Zoroastro. O final de cada período de 3.000 anos é marcado pela vinda de um salvador, sucessor e filho póstumo de Zoroastro. O terceiro e último salvador, Saoshyans, realizará o julgamento final, dispensará a bebida da imortalidade – o soma - e será o porteiro do Novo Mundo, ou Paraíso. Serão então passados os quatro períodos de 3.000 anos. De acordo com esta Cosmologia, tudo isto acontecerá ao final do último período, 3.000 anos após o nascimento de Zoroastro, isto é, daqui a 368 anos. Os sistemas religiosos predominantes atualmente são o resultado de um sincretismo, de uma mistura de religiões antigas, em sua maioria já extintas. Saibamos extrair de cada uma delas o que de melhor têm ou tiveram. O resumo nos mostrará que a Lei de Talião sempre destrói e que só o Amor constrói.

OBRAS CONSULTADAS

Os Grandes Livros Misteriosos - Guy BechtelZoroaster - Ordem do Graal na Terra
A Doutrina Secreta – H.P.Blavatsky – Volume IV
Grande Dicionário de Maçonaria e Simbologia – Nicola Aslan
O Livro de Ouro da Mitologia - Thomas Bulfinch

BIBLIOGRAFIA

DIAS, Rosa Maria. "A vida como vontade criadora: uma visão trágica da existência", in: Ethica. Rio de Janeiro: Gama Filho, v.11, n°1, pp. 27-43, 2004.
FERNANDES, Edrisi. As origens históricas do Zaratustra nietzschiano: o espelho de Zaratustra, a correção do "mais fatal dos erros" e a superação da "morte de deus". [dissertação de mestrado]. Natal: UFRN, 2003.
FERRAZ, Maria Cristina. Nietzsche o bufão dos Deuses. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
FOGEL, Gilvan. Conhecer é criar – um ensaio a partir de F. Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial e Ed. UNIJUÍ, 2003.
HÁLEVY. Nietzsche – uma biografia. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda e Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
NIETZSCHE. Sämtliche Werke – Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, 15 volumes. Berlim/Munique: Walter de Gruyter & Co./DTV, 1988.
____. Assim falou Zaratustra – um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
____. O Anticristo – maldição ao cristianismo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.