quinta-feira, 1 de julho de 2010

O PROFETA ZARATHUSHTRA

ZOROTUSHTRA – ZARATHUSHTRA – ZARATUSTRA


No decorrer do final do séc. VII e no início do séc. VI a.C. Zoroastro reformou a religião que os antigos Iranianos tinham herdado de seus antepassados Indo-Iranianos (cerca de 1500 a.C.). Ele viveu e ensinou entre as tribos seminômades do que é atualmente o nordeste do Irã, longe de todo o contato com a civilização das cidades da Babylonia e da parte ocidental do Irã.
A religião que ele pregou espalhou-se por todo o Irã e por outros países, e influenciou o desenvolvimento posterior do Judaísmo, do Cristianismo, e também o pensamento Grego e Islâmico. Os Parsis da Índia – persas que emigraram para a Índia, pressionados pelos muçulmanos - conservam viva, até hoje, a sua religião.

O PROFETA

Zoroastro é a forma Grega do nome Zarathustra no antigo idioma Iraniano. De acordo com a tradição Iraniana, ele viveu “258 anos antes da conquista da Pérsia por Alexandre Magno” em 330 a.C. Considerando que Zoroastro tinha 30 anos quando teve a sua primeira visão, considerando também que ele começou a sua pregação aos 40 anos e que ele converteu o Rei Hystaspes dois anos depois, pode-se determinar que Zoroastro viveu no período de 630 a 553 a.C.
Zoroastro reformou e sistematizou o antigo e tradicional politeísmo Iraniano, dando-lhe uma base ética e moral. Ele pregou não só a reforma religiosa como também a reforma das condições sociais que prevaleciam na época. Com freqüência denunciou a desorganização do nomadismo e lutou pela fixação do homem à terra, introduzindo a prática da agricultura.
Em sua pregação, Zoroastro foi bastante combatido pelos sacerdotes dos antigos cultos e seus seguidores, a quem ele acusou de seguidores do demônio. Embora não se conheça muito de sua vida, pode-se afirmar que Zoroastro foi uma figura histórica e não um mito criado pelas lendas populares. No Zend Avesta, de sua autoria, Zoroastro proclama uma nova filosofia de vida que reflete as esperanças e as dúvidas, os medos, os ódios e os triunfos de uma personalidade marcante.
Após a sua morte, apareceram várias lendas ligadas ao seu nome. Uma delas, por exemplo, dizia que a Natureza festejou o seu nascimento, enquanto que os demônios, que percorriam o mundo em forma humana, fugiram para debaixo da terra. Também se dizia que Zoroastro já nasceu rindo, além de ter falado com Ahura Mazda (o grande deus) e seus anjos, e de ter repudiado Ahriman (o demônio) que o tentou. Zoroastro foi o modelo para todos os sacerdotes e guerreiros, sendo também insuperável na medicina e em todas as artes. As principais fontes destas lendas são os textos Pahlavi, do séc. IX a.C. e as Seleções de Zatspram.
No Ocidente, também foi grande a reputação de Zoroastro, de quem se diz ter sido mestre de Pitágoras. Inúmeros foram os livros, escritos em grego, atribuídos a Zoroastro. Estes livros versavam sobre ciências naturais, astrologia e magia. Tanto os Judeus quanto os Cristãos identificaram Zoroastro com alguns de seus próprios profetas, incluindo Ezequiel e Baruch.
Durante toda a Idade Média ele foi conhecido na Europa apenas como mago. Foi somente no final do séc. XVIII que emergiu uma nova imagem de Zoroastro, devido à ação de estudiosos europeus, liderados por A.H. Anquetil-Duperron. No séc. XIX Nietzshe, visceral inimigo da Igreja Católica, em sua obra “Also sprach Zarathustra” (Assim falou Zaratustra), para atingir seus objetivos literários e filosóficos, mudou a doutrina de Zoroastro, mostrando-o não como um dos primeiros grandes moralistas, como efetivamente foi, mas como o primeiro dos imorais.

A RELIGIÃO À ÉPOCA DE ZOROASTRO

A religião Indo-Iraniana da época de Zoroastro era politeísta e bastante influenciada pelos Vedas da Índia. Mitra e Varuna eram alguns dos deuses adorados pela população, que era dividida em três classes: os governantes e sacerdotes, os guerreiros e o povo. E cada uma destas classes tinha os seus próprios deuses. A classe alta praticava rituais que incluíam o sacrifício de bois e a ingestão de uma bebida sagrada, feita com uma erva chamada soma e que provocava sensações de imortalidade e visões do Nirvana (esta bebida é bastante citada por Bertrand Russel na obra Admirável Mundo Novo). Zoroastro rejeitou o culto de todos estes deuses, exceto um, Ahura Mazda que, em língua Parsi significa “Sábio Senhor”. Este deus já era cultuado na 3.época de Dario I (522-486 a.C.) A origem do demônio é explicada da seguinte maneira no sistema de Zoroastro: no inicio da Criação havia dois espíritos gêmeos, filhos de Ahura Mazda, que escolheram entre o bem e o mal. Um, Ormuzd, escolheu o bem; ele é associado à verdade, à justiça e à vida. O outro, Ahriman, a Mentira, escolheu o mal e é associado à destruição, à injustiça e à morte.
De acordo com Zoroastro o fim do mundo estaria próximo e somente os crentes renasceriam para uma nova vida imortal. Até que isto acontecesse as almas dos mortos atravessariam a “Ponte do Recompensador” de onde as almas boas seriam encaminhadas ao paraíso, e as más seriam enviadas ao inferno para se purificar pelo fogo, de modo a prepará-las para a Renovação Final do Mundo. Em relação aos rituais, Zoroastro condenava tanto os sacrifícios de sangue, (animais eram imolados, principalmente o boi) quanto o sacrifício da ingestão do soma. Ele manteve o sacrifício do fogo, que considerava o símbolo da Verdade e da Ordem. Após a morte de Zoroastro a sua religião expandiu-se vagarosamente para o sul, em direção ao que é agora o Afeganistão, e para o oeste, na direção dos Medas e dos Persas.

OS PRINCÍPIOS ÉTICOS E MORAIS DE ZOROASTRO

Zoroastro ao nascer, ao invés de chorar sorriu, de acordo com a lenda. Essa história traduz muito bem a sua visão positiva e alegre do mundo e de seu destino. O antigo sistema de pensamento de Zoroastro, com todos os seus desdobramentos filosóficos, políticos e religiosos, continua atual em seus desafios e em sua surpreendente abertura para a renovação. A busca de Zoroastro começou como a de muitos dos profetas de então e de agora. Chocado com as contradições da sociedade de sua época e decepcionado com as respostas dadas pelo meio pensante, ele decide fazer a sua própria descoberta. Contudo, a sua busca é diferente das dos outros, por não ter como desencadeante o problema da morte, mas o do estado de convivência social injusto de seu tempo.
É interessante notar, desde logo, que ele começou fazendo perguntas e terminou descobrindo algo que o ajudou a fazer mais perguntas ainda, sem necessariamente acompanhá-las com respectivas respostas. Zoroastro descobriu o que queria, não como uma revelação e nem como coisa privativa sua. Ele encontra o óbvio, o que está escrito nas páginas da vida e que pode ser lido por qualquer um. Ele é uma pessoa comum que, no esforço de seu intelecto e na sensibilidade de seu espírito, consegue ver que este é um mundo bom, criado por um Deus bom e destinado a um estado de alegria radiante.
Constatando isso, ele desenvolve uma proposta que tem tanto uma elaboração filosófica como conseqüências práticas para a vida. A grande questão, colocada para ser resolvida por todos os sistemas filosóficos e religiosos, o bem e o mal, para Zoroastro se resolve dentro da mente humana. O bom pensamento ou boa mente cria e organiza o mundo e a sociedade, o mau pensamento ou má mente faz o contrário. Cabe ao ser humano fazer uma escolha e ele tem o poder e a capacidade de fazê-la.
O Cosmo inteiro está a seu favor quando escolhe a boa mente, enquanto que a má mente isola e, portanto, angustia quem por ela opta. Essa escolha é feita no dia-a-dia da pessoa, em cada ação. Ninguém pode fazer uma opção definitiva, esse é um mecanismo dinâmico e progressivo. Essa escolha não desencadeia a salvação ou perdição de ninguém, porque ela é parte de um processo de aprendizagem contínuo, aberto e reformável de acordo com o contexto. Com o progresso de cada indivíduo também progride o mundo, e assim é acelerado o aperfeiçoamento do universo. O quadro só será completado quando todos tiverem chegado lá, quanto todos estiverem no mesmo nível de progresso.
É como numa orquestra; o concerto só é possível após cada instrumento estar afinado. Aliás, essa é a organização interna de todas as coisas em suas especificidades. A perfeita condição de cada parte garante o perfeito funcionamento do todo. Essa descoberta de Zoroastro levou a conclusões inusitadas e revolucionárias. Acenou com uma nova organização social e uma nova religião. A religião baseada no medo do mistério e no apaziguamento de suas forças através da magia e da expiação não fazia mais sentido. Ele descobrira a religião da alegria participativa. Admirada pelo do fato de ser parceira de Deus em seu projeto para a humanidade, através de um processo de livre escolha e de colaboração, a pessoa responde com o cultivo da Boa Mente, de Boas Palavras e de Boas Ações. Essa é a ética da responsabilidade.
Esse esforço, que inicialmente é individual e continuará a sê-lo, recebe, contudo o poder transformador de Deus, que traz em si todas as virtudes: justiça, retidão, cooperação, verdade, bondade etc. O poder transformador de Deus age no mundo em todos os setores e especialmente nas pessoas que lhe abrem a mente. Ele incentiva e capacita o ser humano à escolha e à prática do bem.
As pessoas que vão descobrindo a capacidade que têm de fazer essa opção vão se unindo na descoberta natural de que são parte de um todo magnífico, que se forma em parceria com Deus. Nesse sistema não há lugar de destaque a fé ou para a crença. Não é necessário crer; é preciso saber e agir de acordo com o que se sabe. Temos aqui, então, a religião do conhecimento. É a razão que se sobrepõe à fé e à emoção.
A visão de mundo de Zoroastro não coloca o ser humano como o centro, o motivo de ser do planeta. Ao contrário, uma das tarefas dadas pelo pensamento de Zoroastro é que o ser humano ache o seu lugar no mundo de forma harmoniosa, de modo a não desequilibrar o seu meio. Reverenciar e proteger a terra, a água, o ar e o fogo, além dos outros seres viventes, é uma preocupação constante que aparece no pensamento de Zoroastro. Não há diferença de raças ou de gênero em Zoroastro. O Deus descoberto por Zoroastro não é tribal e não tem um povo escolhido dentre os outros povos. Tanto o homem como a mulher pode tomar a liderança, mesmo nos ritos religiosos.
Talvez o que há de melhor em Zoroastro seja a abertura, quase desafio para se seguir adiante perguntando, descobrindo, mudando, e tudo isso, num movimento dinâmico de progresso. Nada está fechado numa ortodoxia oficial. Em seus cânticos ele faz 93 perguntas e as deixa sem respostas. Está ausente ali a arrogância de dono de uma verdade estática e acabada. E isso não traz insegurança e sofrimento, antes, a certeza de que o que importa está além e acima das idéias. A doutrina de Zoroastro ensina a emancipação e a autonomia do indivíduo. Só a partir disso se torna possível a descoberta do próximo como pessoa e, conseqüentemente, a criação da comunidade. Não há lugar nessa visão para qualquer anulação do ego. Ao contrário, o ego é reafirmado e colocado como base do encontro com o próximo. Se sadio e bem amado, o ego forte é poderoso na capacidade de doação e desprendimento.
A sociedade é para ser organizada dentro desses princípios de livre escolha, da boa mente e da busca do bem de todos os seres. Os líderes têm que ser escolhidos por serem justos e equilibrados. Zoroastro, apesar das dificuldades que enfrenta em seu tempo e que, também desencadeiam a sua busca, não vê o mundo como arruinado, do qual urge fugir e se possível salvar alguns. Antes, o mundo é uma obra em fase de construção, ao qual somos convidados a unir criativamente as nossas vidas. Essa visão de mundo provoca uma ética diferente da que dominou o mundo ocidental, que recorre à punição/recompensa como veículo principal de estímulo ou contenção. A prática profunda desse pensamento na sociedade não teria criado um sistema judiciário com prisões. O ser humano não está contaminado pelo pecado, antes, pelo contrário, capacitado para escolher a boa mente e para construir um mundo diferente e melhor. Uma leitura de Zoroastro com essa abundância de negações não lhe faz justiça. O contexto judaico cristão onde estamos inseridos, porém, nos obriga a usar esses termos, pelo menos num primeiro momento. Resgatado e atualizado, esse velho pensamento pode fornecer material para a ética que precisamos nesse nosso tempo. Ele é aberto, estimula o conhecimento e a pesquisa, é ecológico, inclusivo e pode ser também fonte de uma profunda e rica espiritualidade.

O PERÍODO SASSÂNIDA

Com o início de uma nova dinastia nacional Persa, os Sassânidas, em 224 d.C., a religião de Zoroastro foi oficializada no país. A sua hierarquia detinha considerável poder político, e as outras religiões (Cristianismo, Maniqueísmo e Budismo) foram perseguidas. O Avesta foi compilado, editado e traduzido com comentários explicativos, em Pahlavi, dialeto de uma região do centro da Pérsia. A esta tradução comentada chama-se Zend. Daí o nome Zend-Avesta, dado ao livro sagrado dos seguidores de Zoroastro. As últimas obras do período Pahlavi informam que a religião de Zoroastro incorporou contribuições Gregas e Indus. As idéias gregas podem ser identificadas nos mitos cosmológicos; o mundo foi criado inicialmente no estado espiritual, uma espécie de Matéria Prima no sentido aristotélico; e a origem do mundo material é atribuída à condensação gradual do elemento sutil – a Luz – através de sucessivos estágios, começando pela Água, depois pela Terra e finalmente por todas as formas de matéria densa. Durante o período Sassânida prevaleceu no reino persa a doutrina de Mazda, ou mazdeismo.

PERÍODO PÓS-CONQUISTA MUÇULMANA

Sob o domínio árabe, a maior parte da população foi forçada a abraçar o Islam, mas a religião de Zoroastro foi tolerada até certo ponto, conseguindo sobreviver por mais trezentos anos. Entre os séc. IX e X da era cristã, a perseguição muçulmana levou os remanescentes do Zoroastrianismo a emigrar do Irã para a Índia, para a região de Bombaim, no Hindustão. Os descendentes destes Zoroastrianos foram os primeiros, na Índia, a receber a influência Européia, tornando-se os melhores colaboradores dos ingleses, que sucederam os portugueses no domínio do continente indiano. No séc. XIX os remanescentes da religião de Zoroastro na Índia, chamados Parsis, retomaram o contato com os alguns remanescentes da mesma religião no Irã, os Gabars, formando atualmente as duas únicas comunidades praticantes do Zoroastrianismo.

A LITERATURA ZOROASTRIANA

Esta literatura divide-se em duas partes: o AVESTA, trabalho original escrito na antiga língua Iraniana chamada Avistak, e os textos escritos muito mais tarde, em língua Pahlavi ou Persa, dialeto da região central da Pérsia. A palavra Zend significa “interpretação” e é empregada para indicar a tradução e os comentários explicativos da maior parte do Avesta, existentes em língua Persa. Daí o nome Zend-Avesta - o Livro Sagrado da religião de Zoroastro.
A transvaloração nietzschiana de Zaratustra: de profeta dualista a anticristão aniquilador da moral. A partir das freqüentes referências ao cristianismo e ao zoroastrismo presentes em Assim falou Zaratustra, investigaremos as possíveis intenções filosóficas de Nietzsche com este inusitado diálogo. Para tanto, inicialmente ressaltaremos a importância de Assim falou Zaratustra dentre as obras de Nietzsche e destacaremos algumas das principais alusões críticas feitas às doutrinas cristã e zoroástrica ao longo deste livro. Explicitaremos que o zoroastrismo é escolhido como objeto privilegiado de crítica por ser considerado como momento inaugural de uma interpretação moral da existência, difundida através de uma teologia metafísica e dualista. Também mencionaremos que as críticas ao cristianismo foram motivadas por razões semelhantes, sobretudo, pelo fato de ele ter sido identificado como um dos principais propagadores de uma avaliação moral que julga a vida e tenta corrigi-la a partir de parâmetros transcendentes com pretensões universais. Posteriormente, apresentaremos a hipótese de que em Assim falou Zaratustra é efetuada uma transvaloração dos valores professados pelo cristianismo e zoroastrismo, através de uma apropriação paródica-crítica de suas doutrinas. Finalmente, enfatizaremos que o Zaratustra de Nietzsche se distancia da perspectiva valorativa destas tradições por expressar uma avaliação genealógica do valor dos valores, pautada pela afirmação imanente da vida, entendida enquanto vontade de potência.
Nietzsche considerava Assim falou Zaratustra como um de seus principais livros, talvez o mais importante deles. Em Ecce homo, onde discorre sobre aspectos de sua vida e comenta todas as suas publicações, o lugar de destaque atribuído à obra é perceptível desde o Prólogo: Entre minhas obras ocupa o meu Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior presente que até agora lhe foi feito. Esse livro, com uma voz de atravessar milênios, é não apenas o livro mais elevado que existe, autêntico livro do ar das alturas – o inteiro fato homem acha-se a uma imensa distância abaixo dele –, é também o mais profundo, o nascido da mais oculta riqueza da verdade, poço inesgotável onde balde nenhum desce sem que volte repleto de ouro e bondade. (EH, “Prólogo”, §4).
O capítulo que dedica ao elogio de Assim falou Zaratustra é o mais longo dentre os destinados a comentar suas publicações e em todos os outros quatro capítulos que integram Ecce homo1, o livro é mencionado. Nietzsche chega a se identificar com seu protagonista ao sugerir que os nomes do músico Richard Wagner e do filósofo Arthur Schopenhauer, elogiados em algumas de suas obras de juventude, sejam substituídos pelo seu próprio nome ou pelo de Zaratustra. (EH, “O nascimento da tragédia”, §4 e “As extemporâneas”, §3). 1 Os demais capítulos de Ecce homo, além do Prólogo e dos dedicados especificamente a comentar as publicações de Nietzsche, são: “Por que sou tão sábio”, “Por que sou tão inteligente”, “Por que escrevo tão bons livros” e “Por que sou um destino”. 2 A primeira e a segunda parte de Assim falou Zaratustra- um livro para todos e para ninguém (Also Sprach Zarathustra - Ein Buch für Alle und Keinen) foram redigidas e publicadas em 1883, a terceira em 1884 e a quarta e última em 1885. Os livros de Nietzsche publicados após Assim falou Zaratustra, além de Ecce homo (1908), foram respectivamente: Além do bem e do mal (1886), Genealogia da moral (1887), O caso Wagner (1888), Crepúsculo dos ídolos (1889), Nietzsche contra Wagner (1889) e O anticristo (1895). 3 O nome Zarathustra é, habitualmente, traduzido para português como Zoroastro ou Zaratustra. Convencionamos utilizar Zoroastro para nos referirmos ao místico oriental e Zaratustra para designar o personagem de Nietzsche.
Não apenas em sua autobiografia intelectual (Ecce homo), mas em todos os escritos posteriores à publicação das quatro partes que compõem Assim falou Zaratustra, Nietzsche enaltece este livro como ápice da expressão das principais noções de sua filosofia.2 A ponto de se referir a suas obras subseqüentes, Além do bem e do mal e Genealogia da Moral, como glossários explicativos para sua compreensão e afirmar que o livro dedicado à apresentação de seu projeto de transvaloração de todos os valores, O Anticristo, se destina somente para os poucos extemporâneos que, eventualmente, tenham compreendido Zaratustra: Este livro é para pouquíssimos. E talvez eles ainda não vivam. Seriam aqueles que compreendem meu Zaratustra: como poderia eu me confundir com aqueles para os quais há ouvidos agora? – Apenas o depois de amanhã é meu. Alguns nascem póstumos. (AC, “Prólogo”). Diante da extrema importância que Nietzsche atribui a Assim falou Zaratustra, surge a inevitável dúvida sobre as possíveis razões que o teriam levado à escolha de um protagonista tão improvável para figurar nas páginas deste livro, desde o título, tão exótico e enigmático. Afinal, quem teria sido Zaratustra e por que escolhê-lo para protagonizar uma obra filosófica que se pretende transvaloradora de valores? Zoroastro3 teria vivido por volta do século VII a.C. na Pérsia (região hoje correspondente ao território político do Irã) e sido o fundador do zoroastrismo (também A transvaloração nietzschiana de Zaratustra conhecido como mazdeísmo). De acordo com uma das principais versões difundidas pela tradição desta doutrina, aos 30 anos de idade ele teve uma revelação mística através da visão do deus Ahura-Mazdâ (sábio senhor ou o senhor da sabedoria) onde lhe foi conferida a missão de pregar “o valor mais alto” da verdade, retidão e ordem. Enquanto profeta desta divindade compôs hinos místicos em seu louvor, intitulados Avesta, dos quais foram preservados apenas, aproximadamente, 1/4, dos textos litúrgicos originais.4 Ciente da dúvida que surgiria sobre as razões que o teriam levado a resgatar este místico oriental, morto há quase três milênios, para sua filosofia, em Ecce homo, Nietzsche explicita alguns de seus motivos: O que precisamente em minha boca, na boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra: pois o que constitui a imensa singularidade deste persa na história é precisamente o contrário disso. Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas – a transposição da moral para o metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão já seria no fundo a resposta. Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em conseqüência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo. (EH, “Por que sou um destino?”, §3. Grifos nossos). 4 Para uma análise mais detalhada do Zoroastrismo e da relação de Nietzsche com este pensamento, Cf. FERNANDES, E. As origens históricas do Zaratustra nietzschiano. 5 Utilizamos o termo "maniqueísmo" em sua acepção coloquial de rígida delimitação e oposição entre "o bem" e "o mal", sem qualquer alusão à doutrina dualista posteriormente criada pelo também profeta persa Manes (ou Mani) no século III d.C. Nietzsche aponta Zoroastro como principal responsável pela interpretação moral e maniqueísta5 da existência que veio a exercer profunda influência no pensamento ocidental. Ele quem teria instituído pares valorativos metafísicos dicotômicos para ajuizar a vida. Então, por que Nietzsche, autoproclamado “primeiro imoralista”, nomeou o ímpio protagonista de uma de suas principais obras “aniquiladoras da moral” precisamente com o nome daquele que considera como tendo sido o primeiro metafísico moralista? Certamente que Nietzsche, com o seu Zaratustra, não deseja fazer algum tipo de apologia mística ao dogmatismo e à transcendência. As inúmeras referências feitas às doutrinas e práticas de certas tradições religiosas não têm a intenção de enaltecê-las, mas de parodiá-las criticamente com o intuito de transvalorar os discursos místicos dogmáticos de tom profético. É o próprio Nietzsche quem esclarece: Aqui [em Assim falou Zaratustra] não fala nenhum “profeta”, nenhum daqueles horrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados fundadores de religiões. É preciso antes de tudo ouvir corretamente o som que sai desta boca, este som alciônico, para não se fazer deplorável injustiça ao sentido de sua sabedoria [...] Aí não fala um fanático, aí não se “prega”, aí não se exige fé: é de uma infinita plenitude de luz e profundeza de felicidade que vêm gota por gota, palavra por palavra – uma delicada lentidão é a cadência dessas falas. Tais coisas alcançam apenas os mais seletos; ser ouvinte é aqui um privilégio sem igual; não é dado a todos ter ouvidos para Zaratustra. (EH, “Prólogo”, §4).
Consideramos que uma boa chave interpretativa para elucidar a questão da escolha do nome “Zaratustra” encontra-se no vigésimo primeiro discurso da primeira parte de Assim falou Zaratustra: “Da morte voluntária”, "Da morte livre" (Vom freien Tode). Discurso que contém a única passagem ao longo de todo o livro onde se alude nominalmente a um personagem tido por histórico, Jesus: Cedo demais morreu aquele hebreu venerado por todos os pregadores da morte lenta; e foi fatal, desde então, para muitos, que morresse cedo demais. Ainda não conhecia senão as lágrimas e a tristeza dos hebreus, justamente com o ódio dos bons e dos justos, – o hebreu Jesus; assaltou-o, então, o anseio da morte. Tivesse permanecido no deserto e longe dos bons e dos justos! Talvez aprendesse a viver e aprendesse a amar a terra – e a amar, também, o riso! Acreditai-me, meus irmãos! Morreu cedo demais: abjuraria ele mesmo a sua doutrina se tivesse chegado à minha idade! Nobre bastante, era ele, para fazê-lo. (ZA, “Da morte voluntária”. Grifos nossos).
Esta passagem evidencia que o objetivo de Nietzsche é o de “reverter”, “transvalorar” (Umwerten) o legado de Jesus e Zoroastro no que concerne às suas interpretações morais da existência e que deseja fazê-lo através de uma “autocrítica interna”, “auto-superação”, “auto-supressão” (Selbstaufhebung). Revive Zoroastro como personagem e parodia diversas passagens da suposta vida e doutrina de Cristo para fazer com que os próprios criadores e mantenedores do “mais fatal dos erros” (a metafísica moral dualista) reavaliem seus posicionamentos. Através da escolha de Zaratustra como protagonista e do intenso diálogo paródico-crítico com a tradição cristã, os criadores de algumas das mais influentes avaliações niilistas da existência são convocados para que eles próprios as “corrijam” e revertam seus efeitos nocivos. Aos 30 anos de idade Zoroastro teve sua revelação mística fundamental e tornou-se profeta de Ahura-Mazdâ. Aos 30 anos Jesus foi batizado pelo profeta João Batista e A transvaloração nietzschiana de Zaratustra iniciou sua pregação pública (Lucas 3, 23). Aos 30 anos, idade em que os dois místicos enquanto batizados, “renascidos”, iniciam suas tentativas de doutrinação do povo com o intuito de angariar fiéis, o Zaratustra nietzschiano opta pelo silêncio e solidão. Parte para a reclusão em uma caverna no topo de uma montanha: “deixou Zaratustra sua terra natal e o lago de sua terra natal e foi para a montanha. Gozou ali, durante dez anos, de seu próprio espírito e da solidão, sem deles se cansar”. (ZA, “O prólogo de Zaratustra”, §1). Ele próprio segue o “conselho” que destina a Jesus: durante 10 anos permaneceu no deserto “longe dos bons e dos justos” até que, aos 40 anos, finalmente aprendeu a “viver, a amar a terra e o riso”. Desde o começo de Assim falou Zaratustra a subversão da mitologia cristã é clara: com a idade em que Jesus principiou seu ensino para a multidão, Zaratustra iniciou seu aprendizado solitário. No mesmo momento cronológico em que Jesus e Zoroastro consideraram-se “prontos” e apresentaram-se como “renascidos”, o Zaratustra nietzschiano partiu para seu processo de “aprimoramento”, para sua morte metafórica: “Tivesse [Jesus] chegado à minha idade teria abjurado ele próprio sua doutrina”. Jesus não poderia saber o que Zaratustra descobre ao fim de seu isolamento porque “morreu cedo demais”. Era ainda inexperiente para o duro aprendizado trágico que carece de maturação e coragem para ser devidamente vivenciado e compreendido. Através de seu Zaratustra, Nietzsche retoma filosoficamente a vida de Cristo. Faz com que ele efetivamente conheça algo além das “lágrimas e tristeza dos hebreus” e do “ódio dos bons e dos justos”. O Jesus parodiado em Assim falou Zaratustra tem sua vida continuada a partir do ponto em que foi abruptamente interrompida, de acordo com o cânone literário cristão. Na apropriação nietzschiana, o messias, convertido em profeta de valores imanentes, deixa de ser venerado pelos “pregadores da morte lenta”, pois se livrou do “anseio da morte”, tendo se tornado um afirmador da existência. Nietzsche dota o principal divulgador do “mais fatal dos erros” da maturidade necessária para perceber o intenso niilismo de seu legado. Apura sua percepção e o converte em aliado que toma a seu próprio encargo a incumbência de “desfazer” aquilo que imprudentemente difundiu outrora. “O hebreu” se tornou venerado pelos “pregadores da morte lenta” por, supostamente, ter inventado um outro mundo para denegrir a este, “um lado-de-lá para difamar melhor o lado-de-cá”. (NT, "Tentativa de autocrítica", §5). O cristianismo atribuiu-lhe a responsabilidade de ter apresentado a negação da existência como uma “boa nova” (significado da palavra “evangelho”). Em contrapartida, o Zaratustra nietzschiano se auto-intitula um “mensageiro alegre como nunca houve” (EH, “Por que sou um destino?”, §1) por restituir à Terra, ao corpo e aos sentidos a inocência que lhes é própria e havia sido maculada pela moralista e detratora interpretação cristã da vida. Contudo, cabe ressaltar que as críticas de Nietzsche são mais direcionadas aos rumos tomados pelo cristianismo do que à pessoa do Cristo propriamente dita, como se pode perceber, por exemplo, no aforismo 39 de O anticristo (cujo título Der Antichrist pode ser igualmente traduzido por "O anticristão"): Já a palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo, houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz. O “evangelho” morreu na cruz. O que desde então se chamou “evangelho” já era o oposto daquilo que ele viveu: uma “má nova”, um disangelho. (AC, §39). Apropriação semelhante ocorre com Zoroastro que teve sua vida “reescrita” por Nietzsche a partir de seu momento mais significativo, da suposta revelação mística de sua doutrina. Em Assim falou Zaratustra são raros os momentos em que o passado do protagonista é mencionado. “O prólogo de Zaratustra” apenas informa que “ele deixou o lago de sua terra natal e foi para a montanha”, porém, em outros textos de Nietzsche, há variações deste trecho com importantes acréscimos: no último aforismo do livro IV de A Gaia Ciência está escrito que “Quando Zaratustra fez trinta anos de idade, abandonou sua terra e o lago de Urmi e foi para as montanhas.” (GC, §342. Grifos nossos) e, em um fragmento póstumo da época em que Nietzsche redigia a primeira parte do livro, lê-se: “Zaratustra, nascido às margens do lago Urmi, deixa aos trinta anos a sua pátria, dirige-se para a província de Aria e, em dez anos de solidão, compõe o Zend-Avesta.” (Apud HALEVY, p.197. Grifos nossos). Estas diferentes versões do início da narrativa evidenciam quão significativa é a presença de elementos diretamente vinculados à mitologia zoroástrica. Foi o profeta persa Zoroastro quem nasceu nas margens do lago Urmi, tendo posteriormente ido para Aria, local onde após um período de meditação no interior de uma caverna, escreveu o Avesta. Passagens como estas nos levam a cogitar a possibilidade de que a vida de Zaratustra anterior ao período relatado no livro de Nietzsche consista precisamente na vida de Zoroastro.6 Apesar de Nietzsche alegar, de modo bastante suspeito, só ter descoberto o significado etimológico do nome "Zaratustra" após a escrita de seu livro e por mero acaso, como se pode ler na carta enviada para Peter Gast (apelido de Johann Heinrich Köselitz) em 23 de Abril de 1883: “pode-se pensar que toda a concepção de meu pequeno livro [Assim falou Zaratustra] tem sua raiz nessa etimologia [do nome Zaratustra], mas até hoje eu nada sabia sobre ela.” (Nietzsche identifica “estrela dourada”, “estrela de ouro” como tradução de Zarathustra). A transvaloração nietzschiana de Zaratustra Tendo em vista o intenso diálogo que Nietzsche estabelece com esta doutrina, não seria excessivo supor que o Zaratustra anterior à subida na montanha rumo à caverna, aos 30 anos de idade, é Zoroastro. Aquele que, de acordo com a tradição do Zoroastrismo, teve sua revelação fundamental em estado de meditação justamente no interior de uma caverna. Da meditação solitária na escuridão de sua caverna, Zoroastro trouxe o “ouro reluzente” de sua doutrina. Metáfora que incorporou ao próprio nome que mudou para simbolizar este seu duplo nascimento. Dividiu sua vida em antes e depois do suposto encontro místico com o deus Ahura-Mazdâ. Contudo, a “áurea” doutrina de Zoroastro se converte em um pesado fardo de cinzas nas mãos do Zaratustra de Nietzsche uma vez que o que liberta Zoroastro aprisiona Zaratustra: “Sofredor, superei a mim mesmo, levei a minha cinza para o monte e inventei para mim uma chama mais clara”. (ZA, “Dos trasmundanos”). E é igualmente no interior de uma caverna que Zaratustra passa pela transvaloração que o “transforma” em profeta de valores imanentes que emancipam os homens de sua subserviência à transcendência.
Assim, podemos compreender que o livro, desde o Prólogo, mostra justamente esta transvaloração de um profeta dualista em um anticristão aniquilador da moral. Mas qual a necessidade de transvalorar determinados valores? Quais os valores criticados e quais os enaltecidos a partir da avaliação nietzschiana? Por quais valores o Zaratustra de Nietzsche baliza seus comportamentos e em que eles se diferenciam dos valores morais cristãos e dos propagados por Zoroastro?
Possíveis respostas a estas questões podem ser encontradas em Genealogia da moral – uma polêmica, livro composto por “três decisivos trabalhos de um psicólogo, preliminares a uma transvaloração de todos os valores” (EH, “Genealogia da moral – um escrito polêmico”). O objetivo principal deste “escrito polêmico”, redigido por Nietzsche como glossário explicativo para a compreensão de Assim falou Zaratustra, não é o de apresentar teorias historiográficas sobre a possível origem dos juízos de valor morais, mas identificar o valor destes valores. A principal questão que norteia a obra é a de avaliar se os juízos de valor morais vigentes são manifestações de vida ascendente que promove crescimento, força, coragem e revela plenitude, ou de vida descendente, que obstrui o crescimento do homem. (Cf. GM, “Prólogo”, §3).
No fundo são duas as negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um lado, um tipo de homem que até agora foi tido como o mais elevado, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado uma espécie de moral que alcançou vigência e domínio como moral em si – a moral de decadence, falando de modo mais tangível, a moral cristã. Seria legítimo ver a segunda contestação como a mais decisiva, pois a superestimação da bondade e da benevolência já me parece, de modo geral, conseqüência da decadence, sintoma de fraqueza, incompatível com uma vida ascendente e afirmadora: o negar e o destruir são condição para o afirmar. (EH, “Por que sou um destino”, §4).
Ao término de sua avaliação genealógica do valor dos valores, Nietzsche diagnostica que os juízos morais correntes na modernidade ocidental são indícios de miséria, empobrecimento e degeneração de vida. Responsabiliza a decadência dos valores morais pelo fato de o homem ainda não ter alcançado seu “supremo brilho e potência” (Cf. GM, “Prólogo”, §6). Avalia que tais valores requerem uma intensa crítica e, ao apontar Zaratustra como contra-ideal ao sistema “compacto de vontade, meta e interpretação” vigente, dá a entender ter realizado em Assim falou Zaratustra a crítica radical que reivindica como necessária em Genealogia da moral. (Cf. GM, II, §24 e §25). Um dos principais aspectos ressaltados por Nietzsche com relação aos valores é que “foram os homens a dar a si mesmos o seu bem e o seu mal [...] não o tomaram, não o acharam, não lhes caiu do céu em forma de voz.” (ZA, “De mil e um fitos”). Ou seja, apesar de habitualmente o valor dos valores ser considerado “como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento” (GM, “Prólogo”, §6), em realidade, ele foi criado e conferido pelos homens. Em Genealogia da moral Nietzsche recorda que a própria palavra “homem [Mensch, em alemão] designava-se como o ser que mede valores, valora e mede, como „o animal avaliador‟.” (GM, II, §8). Cabe ao homem, portanto, a irrevogável tarefa de avaliar e atribuir sentido e valor. A postura humana diante da vida não é neutra, mas sempre “interessada”, “afetiva”, “apaixonada” e se manifesta, fundamentalmente, a partir do corpo.
No quarto discurso da primeira parte de Assim falou Zaratustra, “Dos desprezadores do corpo” (Von den Verächtern des Leibes), Nietzsche apresenta sua concepção de corpo:
"Eu sou todo corpo e nada além disso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo.” [...] Atrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido – e chama-se o ser próprio. Mora no teu corpo, é o teu corpo.
Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, então, precisaria logo da tua melhor sabedoria? A transvaloração nietzschiana de Zaratustra: O teu ser próprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. “Que são, para mim, esses pulos e vôos do pensamento?”, diz de si para si. “Um simples rodeio para chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e o insuflador dos seus conceitos. (ZA, “Dos desprezadores do corpo”). O corpo, entendido como “ser próprio”, “si mesmo” (das Selbst) é aquele que efetivamente avalia e conduz o homem. Corpo e homem são indissociáveis (uma só e a mesma coisa) e sinônimos daquilo que é imanente e, inevitavelmente, interessado e atribuidor de valores. A antítese desta conduta, um comportamento supostamente desinteressado, “diz-se, em alemão, selbstlos, o que, ao pé da letra, significa „sem si mesmo‟, isto é, para Nietzsche, sem um eu, sem um ser próprio.” (Nota nº49 do tradutor de Assim falou Zaratustra). O desinteresse é, portanto, o oposto de um corpo enquanto “ser próprio”, “si mesmo”, tal qual compreendido por Nietzsche. Esta concepção é bastante distinta da noção moderna de subjetividade que pressupõe a existência de um sujeito uno, pré-determinado, distinto do corpo e soberano no comando de todas as funções, inclusive corporais. Isto porque Nietzsche não considera o “sujeito” como inato e passível de ser “descoberto” pelo homem, mas como um constructo de unidade apenas aparente; apesar de nem sempre ser reconhecido como dotado deste caráter poiético ("criador") que lhe é próprio. Esta peculiar compreensão de corpo e subjetividade está diretamente relacionada à noção de vida como vontade de potência. Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder7 (...) a própria vida me confiou [este segredo]: “Vê”, disse, “eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo.” (ZA, “Do superar a si mesmo”). 7 Como se trata de uma citação, preservamos a opção do tradutor, mas ao longo do texto privilegiamos a expressão "vontade de potência" como tradução de Wille zur Macht "por considerar que ela resgata, em certa medida, o dinamismo expresso pela partícula 'zur' (que contém a idéia de 'em direção a'), transpondo-o para o substantivo 'potência', como algo em devir, não mero 'objeto' de uma vontade que lhe seria, por assim dizer, exterior. Tal solução apresenta ainda a vantagem de evitar leituras apressadas e equivocadas do conceito nietzschiano de 'Wille zur macht', que dá inteligibilidade à natureza, à própria vida, confundindo-se com a tendência de todo elemento vital (mesmo no nível das pulsões, dos instintos) a aumentar e intensificar a própria potência." (FERRAZ, M. Nietzsche – o bufão dos deuses, nota 39, p. 66).
Nietzsche não considera o corpo como dotado de uma vontade única, mas composto por uma pluralidade de vontades divergentes entre si. Permanente “campo de batalha” entre distintos estímulos em constante embate. Mas apesar da “guerra” ininterrupta entre esta multiplicidade, a direção é única. A cada momento, uma determinada vontade alcança predomínio sobre as demais e submete as restantes, conferindo-lhes o sentido que deseja. E a configuração que enseja predominância a certa vontade é provisória, logo cede lugar a outro conflito do qual advirá novo resultado igualmente transitório. O corpo humano é caracterizado como “uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”. (ZA, “Dos desprezadores do corpo”). Pois, a cada momento, o “rebanho de vontades” que constitui o corpo humano entra em conflito, do qual “sai vitorioso” determinado “pastor” a conduzir sua direção, mas que no próximo instante será substituído pelo novo vitorioso do conflito subseqüente. O estado de permanente movimento e guerra entre as vontades que formam o corpo se justifica pelo fato de que a vontade tematizada por Nietzsche é entendida como vontade de potência (Wille zur Macht). Ou seja, ela não busca a comodidade e a inércia através de conservação e repouso, mas o constante aumento de potência através de expansão e auto-superação.8 Das posturas que mais se distanciam da afirmação da vida enquanto vontade de potência, tal qual anunciada por Zaratustra, é a daqueles que pautam suas condutas pela vontade de verdade: "Vontade de conhecer a verdade” chamais vós, os mais sábios dentre os sábios, àquilo que vos impele e inflama? Vontade de que todo o existente possa ser pensado: assim chamo eu à vossa vontade! Quereis, primeiro, tornar todo o existente possível de ser pensado; pois, com justa desconfiança, duvidais que já o seja. Mas ele deve submeter-se e dobrar-se a vós! Assim quer a vossa vontade. Liso, deve tornar-se, e súdito do espírito, como seu espelho e reflexo. É essa a vossa vontade, ó os mais sábios dentre os sábios, como vontade de poder, e também quando falais do bem e do mal e das apreciações de valor. Quereis ainda criar o mundo diante do qual possais ajoelhar-vos: tal é a vossa derradeira esperança e embriaguez. (ZA, “Do superar a si mesmo”). 8 Para melhor compreensão do caráter intrinsecamente “expansivo” e criador da vontade de potência, Cf. DIAS, Rosa Maria. “A vida como vontade criadora: uma visão trágica da existência”.
Zaratustra questiona a existência de alguma verdade absoluta, subjacente à vida tal qual ela se apresenta, que possa vir a ser descoberta através de processos cognitivos: “Nunca, até aqui, andou a verdade de braço dado com qualquer ser absoluto” (ZA, “Das moscas da feira”). Ele critica a possibilidade de existir um “imaculado conhecimento” objetivo, capaz de descortinar alguma natureza pretensamente mais íntima e A transvaloração nietzschiana de Zaratustra fundamental da vida. Para Zaratustra, conhecer é criar 9, pois o conhecimento é produzido através de avaliação valorativa empreendida pelo “ser próprio” (“si mesmo”), ou seja, pelo corpo humano. É uma manifestação imanente e perspectiva da vontade de potência, já que os valores vitais não são da ordem da descoberta ou adequação, mas criados pelos próprios viventes. De modo que aquele que deseja “encontrar”, antes, deve criar, posto que “sem a avaliação, seria vazia a noz da existência” (ZA, “De mil e um fitos”).10 A crítica de Nietzsche é direcionada, principalmente, para aqueles que não acatam o caráter criador, múltiplo e belicoso da vida e pautam suas condutas, não pela expansão e auto-superação da vontade de potência, mas pela conservação e adequação da vontade de verdade. Comportamento que, em última análise, consiste em uma “fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo.” (NT, §15). 9 “Avaliar é criar: escutai-o, ó criadores! O próprio avaliar constitui o grande valor e a preciosidade das coisas avaliadas.” (ZA, "De mil e um fitos"). 10 Para um estudo mais detido da questão do conhecimento em Nietzsche, particularmente em Assim falou Zaratustra, Cf. FOGEL, G. Conhecer é criar – um ensaio a partir de F. Nietzsche. Tanto o cristianismo quanto o zoroastrismo são apontados, por Nietzsche, como exemplares desta vontade de verdade que julga e condena a vida a partir de parâmetros transcendentes. São igualmente avaliados como representantes de posturas niilistas negadoras da existência, pois tentam corrigir a vida a partir de valores heterônomos a ela, que se arrogam o status de normas universais. Já o Zaratustra de Nietzsche não se norteia por parâmetros absolutos, por alguma tábua de valores criada pela vontade de verdade. Antes, afirma o caráter perspectivo da vida enquanto vontade de potência e toma como critério avaliativo a intensidade de sua expansão e auto-superação. Zaratustra destrói as velhas tábuas de valor que impõem o que é bom e mau sem, contudo, substituí-las por novas com outros valores absolutos. Não se anuncia como a meta a ser atingida, mas como profeta. O que não significa que deseje ser encarado como novo pastor de rebanhos, antes, sua intenção é oposta: “Atrair muitos para fora do rebanho – foi para isso que vim” (ZA, “Prólogo”, §9) e não para angariar discípulos que o sigam irrefletidamente. Ao invés de censurar aqueles que “o negam”, como fez Jesus com relação ao apóstolo Pedro (Mateus 26, 34), Zaratustra incentiva a divergência em prol da autonomia, pois visa à liberdade e emancipação daqueles que optam por acompanhá-lo. O objetivo de seu ensino não é o de conquistar meros seguidores . discípulos, mas companheiros igualmente aptos para a tarefa de criar valores imanentes, intensificadores da vida, através da afirmação da vontade de potência. Compreendem-me?... A auto-superação da moral pela veracidade, a auto-superação do moralista em seu contrário – em mim – isto significa em minha boca o nome Zaratustra. (NIETZSCHE, F. EH, “Por que sou um destino?”, II, §3).

A COSMOLOGIA

A Cosmologia de Zoroastro concebe a história do mundo como um grande drama dividido em quatro períodos de 3.000 anos cada um. Num passado de duração infinita existiu Ormuzd, que era a Luz, e Ahriman, que habitava a escuridão e as profundezas. Ao final dos primeiros 3.000 anos Ahriman atravessou o vácuo que os separava e atacou Ormuzd que, percebendo que a luta só teria fim se fosse realizada com regras finitas, fez um pacto com Ahriman, limitando a duração de sua luta. Ele então recitou a Ahuna Vairya, a oração mais sagrada dos seguidores de Zoroastro. Ahriman, apanhado de surpresa, caiu no abismo onde permaneceu por mais 3.000 anos, Durante este período Ormuzd fez a Criação dos seres, os espirituais em primeiro lugar, e em seguida a criação material correspondente – céu, água, terra, plantas. Em seguida, ofereceu às almas pré-existentes a escolha entre permanecer para sempre como energia pura, como espíritos, ou encarnar no mundo físico de modo a assegurar o seu triunfo sobre Ahriman; eles escolheram nascer e combater. Nesse meio tempo, Ahriman gerou seis demônios e uma criação material oposta à dos seres criados por Ormuzd. No final do segundo período de 3.000 anos Ahriman, instigado pela Mulher Primordial, a Prostituta, atacou o céu e corrompeu a criação de Ormuzd. No terceiro período, Ahriman triunfa no mundo material, mas é incapaz de escapar dele. Enganado por Ormuzd, ele é sentenciado à sua própria destruição. O início do último período testemunha a chegada da religião na Terra e o nascimento de Zoroastro. O final de cada período de 3.000 anos é marcado pela vinda de um salvador, sucessor e filho póstumo de Zoroastro. O terceiro e último salvador, Saoshyans, realizará o julgamento final, dispensará a bebida da imortalidade – o soma - e será o porteiro do Novo Mundo, ou Paraíso. Serão então passados os quatro períodos de 3.000 anos. De acordo com esta Cosmologia, tudo isto acontecerá ao final do último período, 3.000 anos após o nascimento de Zoroastro, isto é, daqui a 368 anos. Os sistemas religiosos predominantes atualmente são o resultado de um sincretismo, de uma mistura de religiões antigas, em sua maioria já extintas. Saibamos extrair de cada uma delas o que de melhor têm ou tiveram. O resumo nos mostrará que a Lei de Talião sempre destrói e que só o Amor constrói.

OBRAS CONSULTADAS

Os Grandes Livros Misteriosos - Guy BechtelZoroaster - Ordem do Graal na Terra
A Doutrina Secreta – H.P.Blavatsky – Volume IV
Grande Dicionário de Maçonaria e Simbologia – Nicola Aslan
O Livro de Ouro da Mitologia - Thomas Bulfinch

BIBLIOGRAFIA

DIAS, Rosa Maria. "A vida como vontade criadora: uma visão trágica da existência", in: Ethica. Rio de Janeiro: Gama Filho, v.11, n°1, pp. 27-43, 2004.
FERNANDES, Edrisi. As origens históricas do Zaratustra nietzschiano: o espelho de Zaratustra, a correção do "mais fatal dos erros" e a superação da "morte de deus". [dissertação de mestrado]. Natal: UFRN, 2003.
FERRAZ, Maria Cristina. Nietzsche o bufão dos Deuses. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
FOGEL, Gilvan. Conhecer é criar – um ensaio a partir de F. Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial e Ed. UNIJUÍ, 2003.
HÁLEVY. Nietzsche – uma biografia. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda e Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
NIETZSCHE. Sämtliche Werke – Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, 15 volumes. Berlim/Munique: Walter de Gruyter & Co./DTV, 1988.
____. Assim falou Zaratustra – um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
____. O Anticristo – maldição ao cristianismo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.